sexta-feira, 14 de março de 2008

PESSOALIDADE

(2005, MF)



Não sabia exatamente o que sentia. Só sabia que sentia. E sentia muito, sentia físico. Era uma dor no osso esterno, uma cólica intestinal, outra uterina, depois uma sonolência estranha, um incômodo de cada vez, separadamente, seguindo um pulso inaudível a fim de que ela não se esquecesse: 1-estava viva; 2 - viver doía; 3- ela havia ingerido coisas que ainda não havia digerido e que seguiam circulando em seu organismo, dos ossos à cabeça, passando por todos os órgãos possíveis. Tinha vontade de chorar e vomitar, mas não conseguia levar adiante tal vontade. O que lhe restava fazer, senão viver, viver e respirar, viver e beber água, viver e suportar? Secretamente, sem que sua razão se desse conta, seu coração torcia para que ela não perdesse os sentidos. O que digestão tem a ver com sentidos?



Impossível recapitular tudo o que havia ingerido. Algo atravancava a digestão. Leu no jornal que uma mulher havia morrido de intoxicação alimentar. Maionese infectada. Medo. Mas era maionese, era coisa de comer. Ela, se estivesse realmente com problemas, era por causa da ingestão de vida. Havia ingerido muito viver, agora estava aí, sofrendo e delirando como que intoxicada. Pontada no intestino. Estava viva, excessivamente viva. Que contradição!



O dia de hoje: café da manhã. Encontro fortuito na rua: haviam trabalhado juntos. Nunca, em nenhum momento, qualquer sinal de interesse dele por ela ou vice-versa. Foi puro acaso. E quando ela perguntou sobre o filho dele, ele contou que tinha se separado. Ela perguntou se ele se sentia estraçalhado. Ele disse que não, talvez a ex-mulher sim, mas ele não. Ele perguntou o que ela andava fazendo e afirmou que era visível como ela estava bem. Despediram-se. E ela sentiu um frio na barriga. Ingestão. Uma golfada de sensações puramente físicas: ele era um homem bem bonito. Inteligente. Interessante. Ele era um homem e a conhecia – e era isso que, insensatamente, dava sabor àquele encontro. Ingeriu aquele momento e foi bom. Quis mais por pura gula, mas imediatamente puniu-se pela irresponsabilidade da querência. E por um pudor besta. Trouxa! Alguma sonolência.



Almoço, e o e-mail de uma proximidade impressionante escrito por aquele homem distante. Ingestão maciça dele nos últimos tempos, mas de umas duas semanas para cá cumprindo uma dieta espontânea. Claro que seu organismo reagiu. As linhas deliciosamente talhadas de sempre, com cheiro e doçura e pimenta, mas sem concessão a qualquer gordura. Precisas suas palavras. E sinceras. E, sem falar de nada que exatamente ou diretamente se referisse a ela, disse um monte de coisas. Algumas que, racionalmente, não havia compreendido muito bem, mas que foram imediatamente captadas pelo coração. E sentidas, com sofreguidão e aperto. Uma das dores vinha daí, talvez. “Meu tempo está saturado, entre trabalho, meu filho e minha terapia. Suponho que hoje devo navegar por essas marés em solidão; já se verão os portos próximos ao coração. Essas coisas do chamado amoroso sucedem quando menos se espera, assim que decidi também baixar a guarda e relaxar-me um pouco. Enfim.” Um pouco de choro mais a dor no esterno. No instante em que seus sentidos captaram os sentidos do texto, teve apetite voraz de comer comida. Ansiedade, inquietude. Só agora ele baixou as defesas?



Sensação estranha de refluxo. Mais água. E, quando preparava um chá de erva cidreira, porque boldo não havia ali, ela notou que seu celular havia registrado um par de chamadas. Merenda da tarde. Gostava dele, rapaz simpático e gentil que, há uns meses, lhe tinha despertado um tesão com data de validade. Quase no momento em que o prazo estava prestes a expirar e ele lá, com suas questões e seus relacionamentos fugazes (dizia: “tenho meus rolos”), finalmente o tesão foi consumido. Em termos, mas foi. Depois, veio o tempo, a distância e o desinteresse dela. Mas ele reapareceu há alguns dias, interessado. Ela ingeriu mesmo sem muito ânimo. Talvez não tenha lhe caído bem.



Nem precisava recapitular mais, e mais arrotos vieram. Havia o menino, era um menino-moço, dez anos mais jovem e apaixonado por ela. Apaixonado de carne, osso, suor, pernas e saliva. Ela não queria ingerir aquilo tudo. Não tinha apetite para isso, apesar de gostar de que ele gostasse dela. Sabia que, quando ele deixasse de ser apaixonado, ela sentiria falta. E talvez lamentasse o desejo que não teve. Talvez. Ele escrevia poemas, alimentava o próprio blog com saudades e sentimentalidades. Dialogava com os poemas dela, era seu leitor primeiro. Porém, há vinhos que levam anos para ficarem no ponto – e ela respeitava muito o período de maturação de um sabor.



Havia um outro menino, um menino-moço de outro país. Nada houve entre eles na distância, além de uma amizade suave e divertida, como docinhos de festa. Mas ele escreveu fazia umas semanas. Escreveu de longe, de longe de seu próprio lar, de longe dela, porém numa intimidade boquiaberta. Estava quase nela, não como homem, penetrando-a, mas como alma, repercutindo e sussurrando. E que lindo. Dizia que, por muito tempo, tinha negado a energia feminina, como se não precisasse dela. Mas que, graças a alguns anjos que haviam surgido em sua vida – e ela era um deles –, ele estava reaprendendo a aceitá-la. Lilith e Eva juntavam-se para unir-se a Adão. Dizia sim ao amor. Ela também dizia sim ao amor, fez isso diante do mar como promessa. O menino-moço de outro país repercutiu inteirinho em seu corpo, dos lábios ao útero, como se ela fosse parir uma criança-emoção-novidade de presente para si mesma, para ele, para os demais, para o mundo. Ele era muito moço e estava longe, mas ela teve fome.



Embora frugal, jantar com gosto. Cada migalhinha saboreada. Apetecida de algo mais, checou os e-mails. Do mais querido dos seus ex alguma coisa veio uma mensagem. Uma resposta. Tão parecido com ela, tão amado – mas era amado de um jeito que ela o queria para o mundo e não para ela. Ambos com saudade, uma saudade de irmãos que se sabem homem e mulher. Por ora, irmãos. O organismo parecia mais aliviado. Ele dizia que havia mensagens que só ela sabia escrever. Contava das coisas. Anexava um conto, encontrado no blog de uma garota portuguesa, que ele descobrira por acaso e que, de imediato, lhe fizera recordar-se dela. Ele vivendo quase a mesma coisa que ela. Ele com namorada, mas isso não era nem bom nem ruim. Era. E, por ora, ela não queria mudar essa situação. Queria apenas fazer sua digestão. Calminha, sem pressa. E como aquele café com leite noturno lhe fez bem. Tinha café – a saudade dele -, tinha leite – ele estava namorando -, tinha doçura – a partilha silenciosa que ambos faziam, mesmo em cantos opostos da cidade, da vida invisível.



Pronto, o processo havia começado. E agora era aguardar o rumo de cada descobertazinha de vida em cada quilômetro de seu corpo quilométrico e aparentemente infinito. Precisava digerir, por um monte de razões. As principais: 1 – para aproveitar e reter os nutrientes; 2 – para entender um pouco as coisas que se passavam antes de deixá-las passar; 3 – para desocupar espaço e caber mais vida; 4 – para se sentir mais leve e seguir adiante. Digeria aos pouquinhos, como se fosse um conta-gotas. Às vezes tinha sede, mas já se sentia saciada por hoje. Sabia que era só por hoje. Amanhã seriam outros apetites, mas talvez ainda alguns dos mesmos arrotos. Impossível mudar a natureza das coisas, são como são. O osso esterno não doía mais. A sonolência deu lugar a uma sonhessência.



Sentiu-se levemente mareada, muito mais pelo balanço das ondas internas do que pela vida que já se desdobrava dentro dela. Chegava uma onda e lhe dizia “olá”. Chegava outra e lhe pedia para entrar. Soltou seus gazes todos – tinha tantos pudores, tantos receios, tantas autopunições – e, pasme, se pôs a levitar. Sem perder os sentidos, claro, sem perder o sentido de tudo aquilo que estava provando.



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