Era seu último dia – e, agora sabia com certeza, também o primeiro – porém, aquelas pessoas todas, os motoristas, os policiais, a senhora que soluçava, os paramédicos, não sabiam disso. Num instante que durou quase uma eternidade (clichê), ela viu momentos de sua existência passarem como se compusessem um filme de François Truffaut. Mas apenas os bons momentos. Quem montara o filme havia sido bem bonzinho, excluindo as derrapadas, as cagadas, os períodos de tristeza e de dor, os desencontros todos. Ficaram as descobertas, os encontros, as conquistas, os instantes de plenitude e satisfação. Sabia que estava partindo para algum lugar. A outra dela, suave e delicadamente, lhe estendia a mão, chamando-a com os olhos, com o sorriso. Então, começou as despedidas – família, amigos e amigas, mocinho dos suspiros, aliás, todos os mocinhos que já a fizeram beneficamente suspirar, conhecidos e as pessoas bacanas que ela não chegou a conhecer, mas que sabia que existiam (clichê). Quanta gente deixou de lhe telefonar ou escrever naquele dia, o amigo desmarcara o almoço, a professora de canto faltara, o agente de viagens ficara de lhe passar a confirmação do vôo, o porteiro nem chegou a lhe entregar o pacote que alguém lhe enviara da Turquia. Mas ela acolheu a todos, ela entendeu que a gente é assim, acha que tem a vida toda pela frente (e tem, clichê), que vai viver para sempre e pode deixar o tempo passar assim, de um modo tão inconseqüente e esvaziado de sentido. Ah, seres humanos...
Que bom que dançara com os pés no chão. Que bom que tomara suco de laranja. Que bom que os beijinhos de que se recordava eram doces. Se fosse escolher uma única memória, como no longa-metragem do Kore-eda (Depois da Vida), uma única memória para levar por toda a eternidade, escolheria a visão de si mesma andando, saltitante em sua saia rodada florida, com um sorriso no rosto e o buquê de gérberas na mão, cruzando com tanta gente sorridente também, mesmo que boa parte desses sorrisos tenha ficado embutida. Ela havia vivido seu último dia como se fosse o primeiro. E seu primeiro dia de uma nova vida como se tivesse sido o último de uma outra vida, uma vida anterior, não menos importante.
De mim para mim mesma. À outra metade da existência que começa.
29/4/07
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