“Amar os outros é a única salvação pessoal que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.” Clarice Lispector
Viver cada dia como se fosse o último. Porque sempre pode ser o último. Porém, viver cada dia também como se fosse o primeiro, com aquele frescor dos primeiros dias, os olhos completamente recém-nascidos, os ouvidos aprendendo a identificar os sons – entre a música diária e os ruídos, um longo e eloqüente silêncio –, o sabor de frutas recentemente descobertas, a pele clamando por ser tocada, porque novos dias são sempre dias novos. Clichê? Se desapertasse a tecla mute de seus pensamentos, se eles se espalhassem em voz alta, iriam acusá-la de proferir clichês? Ora, então acusam a natureza de produzir lugares-comuns. Porque eu não invento nada, eu apenas contemplo, às vezes constato, quase somente sinto. Sempre. A morte seria um clichê? O arco-íris, outro? E o pêssego? Ora, ora. Como hoje é meu último dia, disse a si mesma, rindo, num sussurro extremamente sedutor, farei dele uma sucessão de clichês. Como também será meu primeiro dia, não me importarei em ser autêntica com todos os meus poros. Riu mais alto. E repetiu: com todos os meus poros! Quantos são? Divertiu-se imaginando a quantidade de poros que um ser humano adulto teria. Ordem dos milhares ou dos milhões? E se fossem seis bilhões, como os habitantes do planeta? Alguém já contou? A nova risada fez eco e ainda escapou pelo vão da janela que acabara de abrir. Como costumeiramente ela se encontrava um tom, talvez dois ou três, acima do desejável para os padrões habituais de contentamento e não tinha nada de cinzentisse (esse jeito cinza de ser, hoje tão comum), além de ser acusada de proferir clichês, provavelmente também seria tachada de excessiva. Mas ela nem ligaria, caso se desse conta disso. Em vez de se preocupar com o que falariam de seu último dia – ou primeiro, dependendo do ponto de vista – olhou as horas.
Quarta-feira. Nada grandioso a ser feito, mas enquanto repassava mentalmente as pequenas tarefas que propôs a si mesma, todas lhe soaram tão importantes. Sabe aqueles dias que prometem ser epifânicos por nada? O sol bonito lá fora, ela com um excelente humor, o café com leite adoçado no ponto certo, o cabelo que secou jeitoso, nenhuma espinha no rosto... Uma ausência total de expectativas. Ah, delícia. Leveza! Clichê? Hahahahaha. Não falei? Hahahahaha. Decreto que meu último dia será repleto de pequenas epifanias. E vestiu a saia rodada repleta de flores. Eu vejo flores em você, cantava numa afinação muito peculiar, enquanto escovava os dentes. Vejo flores em mim, vejo flores naquele que me é fonte de suspiros, vejo na amiga da alma, vejo no companheiro de filmes e livros, vejo na parceira de vida invisível, vejo – que sensação engraçada – numa outra de mim, que me transcende e cujo reflexo no espelho pude captar em segundos. Ei! Nossa, que susto. Vi duas de mim agora. Essa brincadeira me assustou. Cuspiu a pasta. Olhos arregalados, meio duvidosos. Ela tinha visto uma outra dela que sorria, sem escova na boca, sem pasta no dente. Quem era você? Alma?
Não resistiu. Antes de sair de casa, ligou o toca-CDs. Saia rodada pede dança com pé no chão. Iria usar sandálias, caramba, pés de solas pretas, mas quem tem medo de careta? Capitu, na voz de Ná Ozzetti. Três Letrinhas, Marisa Monte. Esquadros, Adriana Calcanhoto. Plainsong, The Cure. E, por fim, olhou as horas de novo, ai, tenho uma sobrinha de uns dez minutinhos ainda, Heaven Knows I’m Miserable Now, The Smiths. Riu de novo. Engraçado, os céus sabem de tudo! Às vezes, a gente tenta enganar a humanidade inteira com sorrisos amarelos, desculpas esfarrapadas, gestos dissimulados, atitudes muito sociais mas tão impessoais. Mas os céus sabem quão infelizes estamos quando assim agimos. Somos muito cagões de vez em quando. Ou quase sempre. Ora, ora. E a vida tão curta, tão curta, tão curta! Opa, já está na hora.
Tudo se torna tão mais interessante quando você se abre para a vida. Clichê de novo? Ela achou que era um sinal: no trajeto entre a estação de metrô Brigadeiro até a Consolação, contou treze pessoas vestindo alguma coisa na cor laranja – bermuda, blusa, camiseta, saia, gravata. Algumas flores em sua saia rodada eram cor de laranja também. Pois então, catorze pessoas com algo laranja numa quarta-feira? Isso era uma epifania, sem dúvida. Há mais gente feliz no mundo hoje, oba! Como era bom não se sentir sozinha ou solitária em suas divagações. Havia noites, mais que dias, o escuro propiciava esses pensamentos, havia noites, e, em geral, não eram de lua cheia, porque aprendera a ficar contemplativa também graças à lua cheia, noites em que ela se sentia a mulher mais solitária de todo universo. Como a única habitante de Plutão – e seu Plutão sendo destituído da categoria de planeta, então ela ficava completamente descolada no universo, inadequada, perdida, solitária. A mulher mais solitária de toda essa imensidão. Não era pouca coisa, esse sentimento não era pouca coisa. Daí o sorriso largo que ela abriu antes que a porta do vagão se abrisse ao constatar a presença de toda aquela cor laranja na quarta-feira ensolarada. O rapaz de vermelho achou que aquele sorriso era para ele. Sorriu de volta. O senhor distraído e engravatado pegou um rastro de sorriso e igualmente pensou-se o destinatário. Sorriu de volta. Se ela olhasse o reflexo do vidro notaria que mais gente se encantara com o sorriso, inclusive ela mesma. A outra dela, de novo surgida repentinamente no átimo entre o olhar e a abertura da porta. Aquela. E retribuindo o sorriso. Alma?
Fez o que precisava fazer pela manhã. Não vale aqui descrever todos os passos de seu último – ou primeiro – dia. Preencha você, caro leitor, com sua imaginação. Como se fosse você. Uns iriam trabalhar; outros, estudar. Alguns iriam a uma consulta médica, outros a uma entrevista de emprego, a uma aula de cerâmica (privilegiados esses), às compras (se com dinheiro no bolso e em férias), a uma sessão de cinema (sortudos jornalistas), ao banco ou resolver uma burocracia qualquer. Assim, ela fez o que tinha que fazer. A saia rodada e florida chamava a atenção. Ou era o sorriso? Havia algo nela que atraía os olhares. Mesmo quando atravessou a rua ao lado de uma loira alta, cabelos muito sedosos, quadris muito largos, óculos escuros muito grandes, ela miúda ao lado da loira, os homens que vinham no sentido contrário detinham o olhar nela, do sorriso à saia florida, reparavam nos olhos, no jeito de andar, um até falou: bonita e primaveril. Era outono, mas ela ficou igualmente lisonjeada. Parou na lanchonete mais próxima e pediu um suco de laranja. Um brinde!
Almoçou, seguiu com a lista de tarefas, de cá para lá, entra e sai, o sol continuava firme e forte, mais gente vestindo laranja, cruzara com uma senhora que usava uma flor bordô presa no cabelo bem preto, ah, que dia cheio de epifanias. Tudo dando certo, só pessoas bacanas cruzando meu caminho, conhecidas e desconhecidas, um privilégio. E só bons pensamentos. Engraçado, sua mente parecia funcionar mais rapidamente que o habitual e seu coração estava tão mais sensível, captava tudo, sentia tudo. Só bons sentimentos. A vida estava tão doce em seu último ou primeiro dia, já nem mais sabia. Parou na padaria. Ficou indecisa entre os suspiros e o sonho, mas optou por dois beijinhos. Um para cada bochecha, brincou com o moço. E sorriu. Ele ficou prosa. Mas ela não podia conversar: tinha mais umas coisinhas para resolver.
E assim foi até umas cinco horas da tarde, talvez um pouco mais, sabe aquela hora do lusco-fusco, da luz com fúcsia, os prédios espelhados refletiam o cor de rosa e o lilás do céu, ainda havia resquícios luminosos do sol, o dia ainda reluzia sem necessidade de lâmpadas. Resolveu voltar a pé para casa, estava cedo, tinha disposição para muito mais, o ar estava uma delícia de respirar, a saia florida ainda rodava, os pés de sola preta nem doíam, nenhuma careta, as pessoas parecem tão mais bonitas hoje. A beleza está nos olhos de quem vê? Ou de quem é visto? Esse deve ser meu clichê de número... Riu alto. Será que em nosso último dia nosso olhar muda tanto quanto em nosso primeiro dia? Não achou resposta. Passou por uma floricultura, seu olhar foi diretamente ao encontro das gérberas, que estavam com uma aparência tão fresca que ela não resistiu. Comprou cinco, todas cor de rosa. E porque sorria, e porque vestia uma saia rosada e por toda a simpatia e a doçura que exalava, o moço caprichou nas folhagens e naquelas florzinhas miúdas, fofíssimas, que pouco se incomodam em ser eternas coadjuvantes das exuberantes flores-star. Que belo buquê, que belo buquê. Agradeceu saltitante, o rapaz sorria envergonhado e feliz.
Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Impossível passar despercebida. O mendigo sorriu. O homem de gel e óculos sorriu. A menina e a babá sorriram. A multidão que atravessou a avenida e cruzou com ela também sorriu. Um lusco-fusco de sorriso para a moça e para as gérberas. Que, diga-se de passagem, refletiam o céu. Outra epifania.
Quando estava a poucas quadras de sua casa, foi invadida por uma imensa ternura por si mesma, pela vida, por toda a humanidade, pelas gérberas, pelas coisas. Num piscar de olhos, enxergou novamente a outra dela, aquela outra leve e sorridente, que a olhava reconhecendo-a como ser humano, mulher, fêmea, gente. Num piscar de olhos.