Aqui, de cá dentro, não dá para saber se a Terra é azul. Porque se trata de outro universo. Aqui, de cá dentro, de onde agora falo, não dá para saber se o punhadinho de vasos sangüíneos sobre o fígado vai crescer, um dia, e chamar minha atenção. Se o coração é vermelho, se as fezes começam a existir do jeito que a gente as conhece a partir desse ponto, etc. De novo: trata-se de outro universo.
Não há um vazio. Muita gente diz: sinto o vazio bem aqui. Aqui, cá dentro, está cheio. Preenchido. Cheio demais, talvez. Há lugar ainda, mas são muchedumbres. Sei, sei. Prefiro a palavra em espanhol, pois abarca mais o significado: muchedumbres. Cá dentro é o lugar das muchedumbres. De muitas ordens: pessoas, sentimentos, sensações, imaginações, fantasias, desejos, ordens diversas, desordens diversas. No aqui de muchedumbres, cercada de gentes por todos os lados, me sinto em plena Ilha Desconhecida, no comando de Ilha Desconhecida, a nau saramaguiana indo e vindo ao encontro de mim mesma. Eu, aqui, cá dentro. E sabe, me senti só. Agorinha ainda me sinto só, embora não tenha abandonado as muchedumbres. São duras, parecem mucho duras, mas de dureza que não retorna reflexo, resposta, revide, realce, remendo, o que for. Talvez, talvez-talvez, sinta um medinho ainda não definido de que as figuras de minhas multidões internas sejam apenas sombras geradas por minha memória. E que a distância já as tenha dissipado no cá fora. No agora. No lá.
Triste é viver entre as multidões e não achar ninguém. E ninguém achar você. E as multidões people people people nos lembrando ininterruptamente que é impossível não ser pessoa, mas que é francamente cabível perder-se. E, então, estar só. O princípio de uma muchedumbre é, justamente, fazer caber todos num espaço em que cada um talvez pouco se encontre. Assim encontrar ao acaso torna-se mais fácil que a procura. Possivelmente porque são apenas sombras e não presenças. Daí meu receio de abrir de fato o armário, as caixas do armário, as gavetas do armário, os sacos que estão nas caixas e nas gavetas. Não sei se estou preparada para as vagas limitadas, para o número contado, para o acesso restrito. Para as ausências.
Pensava que deixava algo de mim, mas está tudo tão preenchido que não sei se faltam pedaços ou se há sinais de presente, de presentes. Não confesso, mas sinto falta de postais, cartões de aniversário, abraços virtuais em programinhas virulentos ou mensagens me causem comoção, que me peguem de surpresa enquanto pico a cebola. Já não recebo mais flores. Perdi as audições para estar em sonhos alheios, e é por isso que a Ilha Desconhecida está sempre partindo sem tripulação. Quando chega, vem carregada de novos imigrantes. Eles passam a integrar as muchedumbres. Mas, então, eu me vejo só e os constato sombras, sem certezas.
Cá dentro é bonito e morno. Chove às vezes, à tardinha ou à noitinha, e raros sãos os dias nublados e frios. Existem mar, dunas e corais. Há igrejas e mesquitas, um castiçal de nove velas, livros e filmes. Padarias e guarda-sóis. As muchedumbres gostam de passear na pracinha, de ouvir música, de bebericar vinho tinto no jantar. Quando, às vezes, desce noite grossa e densa, parece que somem e que não há alma viva. Quando a nau parte, fingem que nem se importam. Mas já flagrei gente chorando quando, a bordo de Ilha Desconhecida, resolvi olhar para trás.
Um dia não estarei mais cá dentro. Talvez esteja no universo da Terra azul, talvez me perca no emaranhado de vasos do fígado ou do coração e não volte, talvez nada disso mas não mais cá. Então.
Seria lindo criar uma ponte entre cá dentro, aqui, e o lá fora, ali. Seria lindo se eu deixasse as muchedumbres se dissiparem em partidas, em sombras e em cinzas. Livres elas e eu, desprendida. Nau Ilha Desconhecida sempre pronta a partir e a voltar. Se em vez de hotéis cá dentro, eu construísse para uma pequena muchedumbre algumas casinhas de sapé, algumas fazendas ou sítios, algumas cabanas com rede e vista para o mar. Se eu preparasse mais pão-de-queijo e bolinho de chuva e deixasse minhas tintas livres, minhas canetas, meus papéis. E, se eu tirar as paredes, apenas quem não faz sombra se animaria a vir e a ficar. Se morarmos todos em Ilha Desconhecida, eu e quienes. E eu não me sentiria assim tão só, assombrada, cercada de gentes por todos os lados.
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