Cobertor no sofá que acompanhava o filme da noite. A xícara cujo fundo ainda suporta um fino arco de café com leite já seco, embora bebido há pouco. Roupas sobre a poltrona, sutiãs inclusive, roupas limpas tiradas do varal cuidadosamente e casualmente separadas das roupas usadas anteontem, que estão sobre uma cadeira da sala de jantar. Sacos plásticos da compra do supermercado, livros e mais livros consultados ontem ou há meses, DVDs espalhados pelo tapete, pelas cadeiras, um até sobre a geladeira. As flores. Nas orquídeas, nas begônias, numa humilde violeta, porque as demais, com preguiça, só apresentam folhagens. Uma folha amarela no lírio da paz. Uma folha branca ao lado do telefone, mas muitas outras escritas ou rabiscadas pela mesa, pelo chão. No rádio, a música pop-melada-animada que me persegue. No CD, a mesma música. No suspiro da hora do banho, idem. Essa música algumas horas antes de ele entrar no apartamento, meia-noite e meia, cheirando a charuto e tesão. Mas essa lembrança nem tem mais cheiro. Ficou apenas a música.
Dia tão claro, tão claro, mas a casa anda meio e meia escura. Faltou abrir a janela do quarto – dificuldade para alcançá-la, entre mais roupas pelo chão, lençóis e sapatos sem par. Por que tudo é tão difícil? Não há resposta evidente. Há um porta-jóias que só carrega bijuterias, queridas todas, mas bijuterias, ao lado de um quadro encostado sobre o bufê improvisado da sala de jantar. Por quê? Não se sabe. Uma garrafa de Casillero del Diablo faz companhia. Ela cheia, o Bailey’s quase vazio. As coisas não fazem sentido. A desorganização, sim, a bagunça, sim, mas as coisas – elas por elas mesmas – não fazem sentido. Tudo é tão difícil.
Suco de maracujá à tarde, café puro e forte à noite, chá de camomila pela manhã. Isso não faz sentido. E o sistema nervoso central, será que é ele?, confuso e bagunçado. Não faz sentido. Difícil, difícil organizar as coisas por aqui. Dentro e fora. No apartamento, no sistema nervoso central, no lugar de onde saem os sentimentos e as emoções e as aflições e os fermentos espirituais. Chamo de coração. Não acho meu coração dentro do meu corpo – deve estar num lugar tão ou mais estranho que a touca para banho. A touca para banho está ao lado de um prato repleto de migalhas de pão integral, de um dicionário de sinônimos e antônimos (ah, tá, isso faz sentido), de um vasinho com flores da fortuna de cor tão bonita quanto melancólica. Com essa vizinhança absurda, não me parece fácil ser touca para banho. Encontrá-la, assim, despretensiosamente. O mesmo acontece com meu coração. Não o acho. Está perdido no meio da bagunça.
Ontem, toalha amarrada na cabeça procurando o pente para o cabelo (estaria ao lado do vinho?), me senti personagem de uma história escrita por não sei quem, não sei por quê, até isso é difícil. Nada faz sentido, mas o roteiro é tão coerente. As decisões sendo tomadas de modo impetuoso e voraz. O apetite transcende a gordura abdominal: está no excesso todo esparramado pelo apartamento, pelo coração (onde quer que ele esteja), pelos pensamentos. Grávida de possibilidades.
Eu personagem-ser-humano tive um pouco de frio e medo ontem à noite, depois do filme, mesmo com o cobertor. Agora, menos medo, menos frio – calorzinho até – mas sigo com o sentimento de estar do avesso. Estou do avesso... e tudo é tão confuso. Agarro-me às coisas concretas, como as notícias de jornal, que me dizem que pertenço de carne e osso, fluidos e surtos, a esse momento presente, a essa época, à vida presente, aos homens presentes. O avesso não é a sombra. O avesso é o avesso, o outro lado, essa bagunça toda, vizinhanças que não fazem sentido, sinônimos ajuntados de um lado e antônimos também agrupados, o que torna tudo ainda mais difícil. Um quebra-cabeça sem figuras, totalmente branco (como o da mãe de Dvir no filme Exuberante Deserto), só com encaixes. E eu não sei encaixar tudo.
Um alívio: aos poucos, me libertar da fabriqueta de bolinhos, aquela produção em série de massas fofinhas e adocicadas e tão cheias de conservantes e adicionantes e bicarbonatos e gordura trans, assepticamente acondicionadas em plastiquinhos coloridos com uma pulseirinha (ou, talvez, um chip) de brinde. Mas a saída do sistema-problema-produtividade-a-todo-custo-e-remuneração-mensal me deixou meio bêbada e meio equilibrista. Com apetite voraz. Sem papel no musical superprodução. Difícil. Tenho monólogos agora, mas nem todos têm paciência para acompanhá-los. Agora sinto que cada passo seguinte é conseqüência do passo imediatamente anterior que escolho dar. E que nada acontece conforme planejamos, o que me agrada muito e me deixa corada e sorridente.
Não agüento mais perguntas que faziam sentido antes, quando eu era bolinho querendo escapar da fôrma. Ainda quero entrar em forma, mas não desse jeito. As sinapses seguem a todo vapor, daí o suco de maracujá, seguido de café, temperado com camomila. Música de novo, caramba! Mundo, mundo, faça sentido por favor, só para aquietar meu coração – por onde quer que ele ande, pois eu não tenho nem quero ter controle. Tenho medo. Medo de ficar sem dinheiro, não pelo dinheiro, nem pela necessidade de mais livros ou roupas ou CDs ou saquinhos de Sabores da Terra de inhame ou cremes para peles sensíveis. Sem dinheiro para viver com alguma dignidade e para a realização de sonhos mais prementes e mais profundos. Mas o maior medo, o medo grande, líder dos demais, é encontrar-me novamente presa a um cotidano esquemático, superficial e frio, operando no automático por oito ou mais horas diárias de submissão e massificação. Dessa vida o que levamos? Essa calcinha esgarçada que visto hoje, por exemplo, não vai comigo à transcendência. Nem esses óculos que me caíram tão bem. Então por quê? Ficam minhas pinceladas, isso sim. E meu coração, feito cinzas (onde quer que ele esteja agora), adubando flores para novas orquídeas e folhagens de plantas preguiçosas. Me pergunto por que sou assim e não há resposta. As coisas são como são e não do jeito que cada um de nós gostaria que fosse. Simples, mas difícil.
Achei um pregador de roupas ao lado dos textos de Fernando Bonassi que tenho de estudar para o próximo encontro do grupo de teatro, “Entre Paredes” é um deles, porque é verdade que tudo chora quando é hora do choro, mas eu gostei mesmo de “Falatório” tirando palavras da minha boca: “Estão falando que animação também é sinônimo de confusão.” “Estão falando dos meus sapatos, dos meus vestidos, dos meus decotes.” “Eu fiquei em silêncio. Eles é que estão falando.” Junto estava um CD dos Beatles, faixa 9: “With a Little Help of My Friends”. Quem me entende p-o-n-h-a-o-d-e-d-o-a-q-u-i, q-u-e-j-á-v-a-i-f-e-c-h-a-r. Quem não me entende mais, porque perdeu a conexão, mesmo com banda larga, por conta de pavio curto, me respeite apenas e já ficarei feliz. E lhe acenderei uma vela, e lhe cantarei uma canção durante o banho.
Claro que dá saudade, mas as vagas são sempre limitadas, mesmo que existam muitas, e isso faz sentido.
Entre o pregador e os textos, estava um fio. Um fio comprido, comprido. Um fio que não sei o que é nem de onde vem ou para onde vai. Tenho a leve impressão que me levará a meu coração.
Então agora eu vou seguir o fio, mesmo que seja difícil. E que não faça muito sentido, sentido algum.
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