I.
Allegro con spirito
Foi numa noite de lua crescente, quente, mas refrescada por uma brisa suave e cheia de picardia, diante de uma praia, voltando de um jantar muito agradável com amigas e já de partida para outro destino. Foi naquela noite de lua virgem e crescente e estrelas crescidas e veteranas, olhando o mar, que eu disse sim. Eu disse sim ao amor. Assim: sim.
Amor, eu lhe digo sim.
Amor, entre em minha vida.
Faça as arrumações que julgar necessárias, mesmo que me tragam dor. Que me surpreendam. Que me amedrontem.
Amor, venha, por favor. Venha.
Eu disse, mas não entendi porquês ou repercussões quando disse. Foi a alma que sussurrou no silêncio daquele instante. Por isso, minha voz inaudível repercutiu tão alto, tão alto. Estremeceu as ondas todas. E me emocionou de suspiros. Dormi sem sonhos naquela noite, uma noite de passagem e de viagem. Havia apenas o frescor de um sim, a serenidade de uma decisão. Não voltaria mais atrás – seriam outras a lua e as estrelas, seria outro o mar, outros a areia, as pegadas, os entardeceres, os choros e os coros. Os coros dos grilos. Os meus choros. As pegadas. Seriam as pegadas dele. Ele, amor.
Eu tinha dito sim ao amor. E não sabia o que isso significava, assim, de pronto, de prático, em minha vida. Intuía que seria uma revolução – e que as barreiras todas, construídas em anos de interpretações equivocadas e esconderijos confortáveis, iriam ruir. Doeria muito, já imaginava. E o que viria depois? Não fazia idéia. Queria experimentar.
A lua sorria. Alegre em espírito. Eu também alegre, com espírito.
II.
Adagio
Antes de eu o conhecer, já o sentia. E estava próximo, e era irresistível, e sabia usar a razão e brincar com as palavras, e sabia deixar escapar bocadinhos de emoção, e partilhava. E me via, de algum jeito, já me enxergava, antes mesmo de me conhecer. Estávamos à espera um do outro. À espera, apenas, sem qualquer continuação, locução nominal ou objeto indireto (pura subjetividade direta, isso sim). Sem o conhecer, já havia me encantado com a pessoa que ele era. Sem me conhecer, ele já precisava de minha presença.
Ele era e eu estava. Quando eu era, ele estava. Fomos juntos em muitos momentos e estivemos em outros tantos. Mas esse jogo com ser e estar pareceu muito perigoso, e as muralhas começaram a ser levantadas. Cada qual à sua maneira. Puxamos um mapa do bolso e estabelecemos uma fronteira. Para cruzá-la daqui para lá ou de lá para cá, era necessário passaporte, apesar da relação tão cordial. Ele se tornou distante e espinhoso, mas jamais deixou de ser cordial. Eu continuei afetiva e achava que havia erguido apenas uma mureta desta vez. Que nada, era tão muralha quanto a dele. Mas a minha disfarcei com trepadeiras e também fui cordial.
Queríamos ter sido ousados, isso sim.
A energia era tão forte que não conseguíamos dormir. As muralhas estavam lá, seguindo a linha da fronteira. E nós, insones, tentando dizer a nossos corpos que tudo não se passava de uma grande bobagem. Eu repreendi com dureza minha alma, dizendo-lhe que havia se equivocado inexplicavelmente. Contive gestos de carinho – vontade de ajeitar sua franja, de abraçá-lo, de roçar suas mãos. Ele falava tanto e tanto sobre assuntos tão díspares e nada nossos que eu me sonambulizava para escutá-los. Os grilos, à noite, faziam uma sinfonia, reproduzindo com metais e sopro, os acordes daquele concerto de Joaquín Rodrigo (ele escutava na interpretação de Miles Davis). E, no quarto, o teto era feito de janelas. Eu dormia olhando o céu. Ele talvez dormisse imaginando o céu que eu via.
No último dia, lhe comprei flores. Atemóias.
Quando parti, pela primeira vez, eu ainda não havia dito sim ao amor.
Quando parti, pela segunda vez, ele estava bem mais leve. Com uma leveza estranha, achei que havia ficado feliz por eu estar partindo. Para mais longe, sem previsão de volta. Ele sorria e vestia camiseta branca. E me abraçou forte. E abraçou de novo. E falou para eu ser feliz aqui, aqui onde estou hoje e agora. Aqui tudo ficaria mais claro. Estava tão bonito ele. Estava e era naquele momento, justamente quando eu partia.
III.
Allegro gentile
Racionalmente, estava conformada com a frustração do equívoco de minha alma e me desenhava possibilidades alheias feitas de pura fantasia como conforto e reparação. Eu havia perdido aquela batalha.
Por outro lado, tinha dito sim ao amor.
Por isso, os sentidos estavam mais aguçados?
Por isso, me sentia mais serena?
Racionalmente, eu já havia dado como encerrada essa história. Continuava mandando meus sinais de fumaça – e não eram muito mais que isso, sinais de fumaça, com carinho e mel. Ponto.
Por isso, me surpreendi naquela tarde esquisita. Racionalmente não entendi nada, mas meu coração tudo captou e começou uma dança de espasmos e contrações. Primeiro, me defendi. Depois, aceitei a invasão.
Hoje, sem lua e sem grilos, teto de concreto, apenas uma janela com rasgos de horizonte, capitulei. Foi num instante de silêncio.
Silêncio e sentimento.
Minha alma se equivoca de novo? Uma vez mais?
Ele escreveu sobre maré de solidão. Portos próximos ao coração. Chamados amorosos que acontecem sem qualquer previsão. Hora de baixar as defesas e relaxar um pouco.
A razão leu: só agora ele decidiu baixar as defesas. Bom para ele. Pena para mim. Que azar o meu.
Eu tinha dito sim ao amor, não posso esquecer. E o aprendizado de abaixar as muralhas e guardar os canhões dói. Parece tolice a princípio, mas não é.
A alma leu: estou enfrentando meus momentos de solidão. Não tenho ao meu lado quem gostaria de ter e, no inesperado desse sentimento, então aproveito para baixar minhas defesas e relaxar um pouco.
Tomei um susto, confesso.
Achei uma bobagem, um novo equívoco da alma.
Não sei mais o que pensar. Pensar? Não aprendo mesmo. Quis dizer: sentir. Mas eu sinto sem querer. Tenho medo.
Estou cá com um amor entre meus braços e não sei o que fazer.
Procuro na minha papelada: Plano de fuga. Sabotagem. Esconderijos.
Amor miúdo ainda. Deixo ressecar?
Medo e dúvida. Patético supor que ele esteja falando para mim. Está falando do futuro e não do presente.
Por que então o coração se perturbou todo naquela tarde? Por que deu pane no circuito interno de defesa?
O que faremos não é uma questão. Não ainda, talvez não seja nunca. O que faço eu é uma questão. O que faço eu com essa novidade que a razão não entende?
Tenho um amor miúdo que chora de fome e saudade. Que aquece minha noite sem teto-janela e sem estrelas veteranas. Navego rumo a um desses portos próximos ao coração, onde, quem sabe.
Que haja praia. Pois desci da torre de marfim e quero experimentar a areia. Sem espelhos mágicos, vejo uma mulher. Uma mulher com um amor.
Estou alegre. Na aprendizagem da gentileza. E dos prazeres.
Um comentário:
nossa gostei do que li, digno de um diário, eu tbem gosto de escrever, só que meu diário vem em forma de poesias e alguns cartões virtuais que ganho!!!
parabéns!
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