Era uma menina ainda quando pediu, de presente de aniversário, uma vela. “Sim, sim, vai ter velinha em seu bolo, filha”, disse a mãe. Não, não era nada disso, e a menina teve que explicar que queria uma vela de presente, uma vela só para ela, uma vela sem hora de acabar, sem hora certa para se apagar, uma vela que brilhasse bonito e quente. Então, num dia ensolarado e feliz de fevereiro, além da boneca e do livro, a menina ganhou uma vela dessas que se usam em procissão, comprida e fina, inodora e incolor. Namorou por dias a fio a vela até arriscar-se a experimentá-la. Era um sábado. Acendeu-a com cuidado à tarde. “Não vai queimar nada, hein”, exclamou o pai. O irmão acompanhava-a, curioso, iluminado lateralmente pela luz vibrante da vela da menina. A luz, ah, essa luz. O sorriso da mãe, sua batata da perna esquerda que a menina achava linda que só. Os pés e a barrigota divertida do pai. As mãos miúdas do irmão (naqueles tempos) miúdo. A mãe de novo, a careca do pai, ela mesma no espelho, sua boneca Susi, a Narizinho da capa de seu livro do Monteiro Lobato, seu tênis furado, a bicicleta Ceci, o diário, a pasta de papel de cartas. O porteiro que veio entregar uma correspondência. Obteve a permissão dos pais para ir ao playground com a promessa de não queimar nada nem ninguém. O jardim. Os amiguinhos. Os vizinhos do quarto andar, que chegavam cheios de sacolas de supermercado. O porteiro de novo, que só dava risada. O vaso ao lado do tapete. O canto do tanque de areia. O faxineiro e sua vassoura. A velha senhora reclamona do bloco B. Mais uma vez, o irmãozinho, que não tirava os olhos da vela. Os sorrisos da criançada que a rodeava. A parede cheia de sombras – mãos transformando-se em bichos, sorrisos virando pinturas, a ciranda formada espontaneamente. E já era noite, quando o pai chamou os dois filhos. Eram ainda três quando subiram, pois a vela teimava em brilhar, presa entre os dedos da menina. Tinha se tornado um toquinho no momento em que a mãe grudou-a na pia da cozinha. Ao sair do banho, a menina encontrou apenas um punhado quente de cera. Missão cumprida, pensou, distraidamente.
A luz, ah, essa luz.
E foi a partir desse dia mágico, quando era ainda menina e mal sabia das coisas (apenas as intuía, talvez), que ela descobriu sua verdadeira vocação. Acender luz. Dar luz, dar à luz. Compartilhar luz. Luzir, iluminar-se e ser iluminada, deixar-se iluminar. Mas esse aprendizado, o da descoberta da mais profunda vocação de um ser humano, é um dos aprendizados mais difíceis. Parece maratona de intermináveis quilômetros combinada com corrida de obstáculos e estrada para o litoral cheia de curvas e declives. E haja serenidade para alcançá-lo nesse cotidiano entupido de preocupações inúteis, exigências fúteis, valores rasos e um montão, montão, montão mesmo, de pseudo-eletricistas.
Ah, a luz. Essa luz.
Sem saber, porque a vocação também vai saindo aos pouquinhos, como goteira ou torneira mal fechada, a menina já adolescente, depois jovem, em seguida adulta, seguiu acendendo velas. Iluminando cantos escuros e também, inadvertidamente, inexperiente, janelas já iluminadas (algumas esquecidas disso, mas tudo bem). Cantos escuros de pessoas queridas, cantos escuros de desconhecidos. Cantos escuros dela mesma. E quanto mais iluminava, gradativamente consciente do que se passava, mais se deixava iluminar e se surpreendia com os aposentos de seu próprio coração.
Vela nas mãos.
Deu-se conta.
Teve uma iluminação?
Pensou: epifania. Disseram-lhe: diosidade. A amiga: escutou a alma, que lindo! O moço jarocho: gracías, tu fuíste esa luz. O colega do grupo de performance: que pessoa iluminada. Jesus Cristo, via Bíblia: ninguém acende luz para deixá-la embaixo da cama. A amiga sul-coreana, lá na distante Montreal: uma vela para você se lembrar da gente. A amiga mexicana em Puebla: esse presente é para você pôr suas velinhas e enfeitar sua casa. A amiga brasileira num aniversário: espero que você goste de velas. O ex-namorado norueguês: vinho com entardecer ou vinho com velas?
A mulher-moça-menina aprendeu, então, as velas de iluminar e as velas de velejar. Combinou-as, assim, divertindo-se e saboreando-se. Descobriu as lâmpadas, os candelabros, os abajures e spots, conheceu rapaz no avião – ela para Puerto Escondido, ele para Guadalajara – que desenhava “luzes de mesa”.
A aprendizagem do velejar com velas e ventos doeu, doeu pra caramba, mas não foi em vão. A mulher que aniversariava em fevereiro envelhecia, apagando velinhas, mas rejuvenescia acendendo-as em todas as partes – especialmente, acendendo as velas invisíveis, essas que a gente mais fosca, tosca e desanimada não logra enxergar, não quer enxergar, porque pensa no dinheiro, no tempo, no poder, no rótulo, no sucesso e nos cocôs de passarinho e nas cascas de banana do caminho (em vez de desfrutar tão-somente), no chuvisco que encaracola os cabelos e na flacidez da pele (quando a da alma já escorregou até o umbigo). Essa gente que busca reluzir de ouro e pó de purpurina, mas que volta ser borrão às escondidas.
Porque a mulher-menina-de-fevereiro (peixe dentro d’água, quando no mar, quando no ar, quando entre as gentes, mas peixe quantas vezes fora d’água, ui, aprendizado de vida) sempre soube que todo ser humano nasce, pelo menos, com uma vela, uma vela imensa, tipo Círio de Páscoa. Às vezes, com pavio mais curto, mais seco, mais úmido, mais fino, mais frágil, mais grosso, menos apto, mais inapto, pouco atrativo, deveras atrativo, tímido, atirado, apressado, lento, lerdo, verde ou roxo, preto ou branco, colorido, fedido, cheiroso, curto ou comprido, silencioso ou estridente. Mas todo mundo tem um – um Círio, um pavio. Pelo menos um.
Obviamente houve dias em que a mulher sentiu-se apagada e opaca, uma noite escura num dia claro. Lógico que houve dias em que a mulher mais parecia uma fábrica de fogos de artifício, iluminando até demais, gastando energia adoidada. Mas a descoberta da luz e da vocação de acender velas sempre suavizou os tropeços e topadas, as derrapadas e as cagadas, os excessos e os insucessos. As velas viram montinhos de cera, montinhos que podem dar origem a outras velas – não mais as mesmas, outras. Então, com o aprendizado das velas, velejantes e vibrantes, velas que brilham e velas que guiam, veio também o aprendizado do desapego. Ninguém pode impedir que a vela cumpra sua missão até o fim do pavio. Mas o fim não é um fim definitivo, é sempre um recomeço, um fim para um começo de algo diferente – e não menos iluminado.
Era uma mulher que acendia velas, então. E quanto mais as acendia, como já tinha percebido na infância, mais se sentia acendida e iluminada pela luz dos outros.
E, novamente, e desta vez mais forte e mais visível, ela peregrinou para iluminar e ser iluminada. E quanta coisa bonita viu, sentiu, provou, ouviu, falou, partilhou, descobriu, sonhou, desenhou, escreveu. Porque a luz não pode morrer e nosso dever, como seres humanos, homos sientens (esqueçamos um pouco essa função “sapiens-sapiens-sapiens”), é brilhar e fazer brilhar. Porque minha luz só tem sentido se encontra a do outro, eu acredito. Como diz o poeta espanhol Antonio Machado, valemo-nos de fé poética, “não menos humana que a fé racional”, e creiamos no outro.
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