Era uma mulher que sabia das coisas.
Às vezes não sabia que sabia, o que sabia, se sabia. Sentia. Simplesmente sentia – e de várias maneiras, e de maneiras muitas vezes diferentes, quantas vezes surpreendentes, sem sentido aparente. Sentindo, desgarrava-se de conceitos e defeitos, teorias e teoremas, explicações superficiais e justificativas banais. Sentia apenas, mesmo não sabendo. E tudo estava lá, guardadinho, dentro dela, pulsando junto com o restante do corpo, sorvendo vida com o restante da alma, sonhando junto.
Como o protagonista masculino de “Still Life”, do Jia Zhang-ke. Anos e anos à espera, anos e anos de sonhos e expectativas e vontades guardados, impregnados em seu corpo. Veio a barragem de Três Gargantas, a inundação, as casas e as ruas submersas. Na torrente das águas, a torrente dos sentimentos. Dezesseis anos se passaram! E mais quantos meses, quantas semanas, quantas horas, quantos minutos. Modéstia na busca, nem sabia até onde. Até que. Até que. E por quê? E agora? E por que não? Então é sim. Assim.
Muitas descobertinhas descobertas em tão pouco tempo. Nudez? Nudez desconhecida de um corpo que a cada dia mudava porque se descobria e descobria a si próprio descobrindo-se? Oh.
A primeira delas veio de si mesma: uma conversa casual gerara um convite inocente. Ao contar para a amiga, olha que curioso, na segunda-feira eu..., a inocência já desimpregnara o convite e ela tomou um susto. Sentiu antes de entender. Depois soube sem querer. Soube surpreendendo-se. Mas... mas... mas... As peças não se encaixavam, porque o convite não tinha nada de mais. Mas era ela a convidada, na verdade. O destinatário havia habilmente convidado a remetente. E era ela. Oh.
A segunda foi no domingo pela manhã. “Mania de Explicação”, de Adriana Falcão, livro teoricamente para crianças. Livro cheio de infâncias, infâncias acumuladas, não nostálgicas, mas infâncias-mitos-fundadores de nós mesmos. Quase chorou de tanta simplicidade e beleza. Conexão imediata com sua menina na mulher que é hoje e às vezes não admite (não admite a mulher, ainda que acolha carinhosamente a menina). Identificação imediata com a mulher que é hoje e já foi menina daquele jeito. “Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa.” Menina que achava o mundo lá fora meio complicado e tentava deixá-lo mais simples e honesto imaginando para si mesma. Essa menina virou uma mulher que sentia para entender o que se passava no mundo cá dentro. Adriana Falcão segue contando sobre a menina: “Existem vários jeitos de entender o mundo. Ela tentava explicar de um jeito que ele ficasse mais bonito.” (A mulher não resistiu e chorou. Era ela! Esse livro era sobre ela!) “Essa menina pensa que é filósofa, as pessoas falavam.”
Reflexões da menina:
“Solidão é uma ilha com saudade de barco.”
> A mulher esteve se sentindo ilha dia desses, mas depois do autoconvite (na verdade, tinha sido um convite para si mesma. Por que não?), era barco. Barquinho chacoalhando...
“Vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele.”
> Algo acontecia lá dentro dela. Tentou abrir as janelas.
“Antes é uma lagarta que ainda não virou borboleta.”
> Mas havia um prenúncio de asas furtacor!
“Indecisão é quando você sabe muito o que quer, mas acha que devia querer outra coisa.”
> Por que a gente sempre quer querer outra coisa em vez de?
“Sentimento é a língua que o coração usa quando precisa mandar algum recado.”
> Tinha aparecido um idioma estranho. Ainda estupefata, tentando decifrar aquele código que soava desconhecido, mas se parecia com algo. O quê?
E, à noite, então, veio a terceira descoberta. “As Rosas não Falam”, na voz potente de Virgínia Rosa, com um arranjo tão ousado quanto febril e vibrante. Acordeão! Por que as rosas desfolhadas precisam provocar dor? Por que os novos botões não merecem orvalho também? Por que sempre cantar a música de Cartola com coração dilacerado, a estima roçando o chão, um peso de amor amargo amaro amassado? Por que não esse acordeão festivo? A surpresa! A surpresa!
E Virgínia seguiu cantando, cantando para a mulher que sabia, sentadinha na segunda fileira, sentada mas dançante, tão dançante essa mulher, porque ela sabia -- porém fingia não saber, ou não queria, não tinha coragem, mas seus quadris, suas pernas, seus pés, tudo nela, seus olhos... denunciavam que ela sabia e sentia querer saber, sim.
Descoberta, completamente descomprimida, comprida, comprida, quase alcançando o céu. Não cabia em si, que doideira, o vento ventava nela e a espalhava. A vida ficava estranha, mas mais bonita. Ela sabia o que era isso. E se abria toda para essa abertura de vida que acontecia ali, naquele instante, mesmo que nem tudo fosse exatamente sabido nem igual ao que foi da última vez. Mas ela tinha uma explicação, explicação igual àquelas da menina-filósofa que carregava no livro comprado às pressas e que também carregava dentro de seu coração. Só que essa explicação era segredinho dela para ela mesma.
Que surpresa!
E sorriu.
Sorriso desses a gente emoldura até vir o próximo.
Um comentário:
Srta. Lóri Capitu,
vou dar o start no sistema de comentários de seu blog! Outro dia mesmo eu fiquei pensando que do jeito que vc escreve bem, merecia um blog na internet! E eis que!
muitos beijos e parabéns pela iniciativa.
com o carinho de sempre, Fabi.
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