quarta-feira, 20 de junho de 2007

Feminino com arte, ou "As Nove Partes do Desejo"

PERFORMANCE

Uma confissão em cinco tons.
Ou como Maria das Graças
se tornou Maria das Dores.


*


Que experiência assistir à Clarisse Abujamra em "As Nove Partes do Desejo". Pela atriz, espetacular, transitando de personagem para personagem (são nove) apenas com a mudança do pulsar, esse pulsar que desencadeia todo o resto. Assim também é em nossa vida: não precisamos montar nossos gestos, nossas expressões faciais, nosso tom de voz, nossa postura a priori. Por que de fora para dentro? Estamos querendo o quê com isso? É o pulsar daquele momento, daquele instantezinho, que desencadeia toda a nossa performance existencial no aqui e agora. Lindo, lindo, lindo.


De novo: que experiência assistir à peça "As Nove Partes do Desejo". Pelo texto, traduzido e adaptado por Clarisse, escrito pela Heather Raffo, atriz americana filha de pai iraquiano. A matéria do Estadão, de tempos atrás, da época da estréia, contou: "Quando indagada se havia escrito a partir de depoimentos, [Heather] respondeu: "Eu não entrevistei, eu abracei cada uma dessas mulheres, vivi com cada uma delas."" Ah, mas que banho em muitos jornalistas, dramaturgos e roteiristas. Trata-se de uma peça polifônica -- em mais de um sentido de polifonia -- em que nove mulheres iraquianas, todas muito diferentes, todas peculiares, todas "reais", exprimem-se em seus mais íntimos desejos e preocupações e sentimentos e opiniões e. Conte a história de sua aldeia e você contará a história do mundo. A peça é política, é documental, é humana, é feminina, é arquetípica. Que mundo é esse que vai além das notícias da BBC, da Reuters, da CBN? Que vai além de documentos emitidos pela ONU? De aviões e bombas? Quem são essas pessoas? E nós com isso?

Mais uma vez: que experiência é assistir à "As Nove Partes do Desejo". A concepção cênica de Márcio Aurélio. Um peça à altura de um documentário plástico e poético, melhor que esses documentários à la Globo Repórter que andam sendo produzidos por aí. A delicadeza do cenário e a delicadeza da luz. A chama fina e firme de cada coração. Volto ao pulsar: o pulsar de Clarisse, o pulsar das mulheres iraquianas, o pulsar de todas nós mulheres do mundo, o pulsar de Clarices e Lóris e Capitus e Ariadnes e Sofías e Madalenas, o pulsar do ser humano, o pulsar da humanidade de hoje. Dessa humanidade que se corrói, dessa humanidade que se destrói, mas que também ama, paradoxalmente, caramba, essa humanidade sabe amar. Às vezes, ama com ódio. Que desperdício, que egoísmo, que pena, que dor. Quê! Quê! Quê! Cadê você?????
Parabéns, Clarisse. E obrigada por ser tão honesta. Ontem, num bate-papo rápido com a platéia, ela disse: "Me sinto plena com essa peça e que bom estar plena. Nessa peça, sou a Clarisse cidadã e a Clarisse atriz, ambas protestando contra a injustiça das guerras."

*

E salve "Maria", "Maria" de Abel Ferrara, filmaço, pungente, dilacerante, transcendente, imanente. As personagens interpretadas por Juliette Binoche, com a maestria de sempre, também são mulheres que estão na peça de Heather, de Clarisse. A Maria Madalena e a Marie, ambas, cada qual em seu tempo, a seu tempo e, graças a Deus, em tempo. Elas dizem SIM, elas dizem sim à vida, ao amor, à humanidade, à feminilidade, à transcendência que não exclui a imanência, à alma.


Diz um dito islâmico que Deus dividiu o desejo sexual em dez partes; deu nove às mulheres e reservou apenas uma aos homens.
Feminino com arte. Sempre.
A mulher em milhares.

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