Assistia a “Infiel”, da Liv Ullman, com roteiro do mestre Bergman. Revia, na verdade, já que, ao zapear a TV a cabo nos antigamentes, às vezes pegava o filme andando. Nunca o tinha visto inteiro, do começo ao fim, linearmente, e com a possibilidade de voltar nesta ou naquela cena para conferir novamente o diálogo – e quantos diálogos maduros, extremamente maduros, quando não duros embora doces ou delicados na aparência – e as rimas visuais da atriz-cineasta (magnífica em “Persona”, entre tantos). Gosto, gosto muito. Pois então, eu o acompanhava e ao mesmo tempo refletia sobre as obscuras motivações do desejo. Desejo é vontade? Desejo é libertação ou liberdade ou liberalidade ou n.d.a.? Desejo é tesão? Desejo é sangue fluido de oxigênio ou pesado de gás carbônico? Aquele limite exíguo e invisível entre o que se suporta e o que não se suporta, entre o que é seguro e o que já não mais tem suporte.
Marianne havia tirado todas as mantas de cima das fragilidades e fraquezas e temores e angústias de David. Também doía para ela, mas a dor passou a alimentá-la, então ela não percebeu. Às vezes, o arrependimento vem bem em cima da hora, quando você recém-ultrapassou a linha e constata que o outro, aquele ali, desnudo na sua frente, não vai agüentar seu peso sobre ele. Mesmo que o peso seja de uma leveza ímpar, mas é insuportável. E aí você nota que, em vez de o sangue acelerar dentro de você, ele diminui o passo, os vasos se contraem, você se contrai toda, vem a compaixão, uma tentativa de “compensar” aquela nudez tão cara e tão difícil e tão amedrontada que se expõe para você. E aí nada flui, a nudez se torna mais forte e mais violenta, você enxerga tudo como se tivesse uma lupa imensa, vê todas as ondulações da pele, os poros, as cicatrizes diminutas, vê a camada de gordura, vê o músculo, enxerga então o osso e aí, exausta, entrega-se à compaixão e não ao homem que está ali, porque ele não está ali, ali estão as angústias dele, os remendos dele, os fragmentos dele. Porque você pegou no osso, você trincou o osso com seu peso, você foi longe de mais para alguém que só podia de menos. Culpa do desejo? Do que estamos falando, afinal?
“Uma pessoa tomando espaço dentro da outra”, diz Marianne. “É inexorável. É assustador.”
Mas Marianne também havia tirado as mantas de Markus. E dela mesma. E, quando disse a frase acima, referia-se, talvez, ao amor. Amor? Peraí. Por que tudo o que não entendemos direito é amor? Markus usou a seguinte metáfora: “Dois velhos amigos que estavam casados havia muitos anos decidiram que estavam cansados de viver. Levaram suas pílulas de dormir para a cama, deram-se as mãos e morreram juntos.” David não suportava o insuportável. Marianne não acreditava no insuportável, mas acabou rendendo-se a ele. Markus simplesmente, em toda a complexidade do sentimento, não suportou.
Filme longo para adultos de fato que não se encontram em estado de euforia – porque ou a gente não entende, ou a gente se enche. Versão em DVD pela Versátil.
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