sábado, 30 de junho de 2007

O dia em que eu resolvi ler o jornal inteirinho

Há alguns dias venho acordando cansada de ser humana. Visitei a sombra e não foi fácil (mas falarei disso em post futuro).

Com esse sentimento de cansaço -- que não era tédio, que não era irritação, que não era angústia, que não era desdém, era cansaço, puro cansaço de toda essa humanidade que me constitui, que me impregna, que faz de mim um ser igual a você e aos outros 6 bilhões de humanos do planeta --, resolvi ler o jornal quase inteiro. Há um tempo desisti da imprensa, especialmente dessa imprensa tão cheia de opiniões, arrogância, cobertura meramente factual, que enxerga nos leitores seus clientes e faz das publicações meros produtos de consumo imediato e imediatamente descartáveis. Um comércio de tomaládacá, me dá seu dinheiro que eu te mantenho super bem-informado, considerando boa-informação tudo aquilo que gera algum lucro e não muda a ordem das coisas, sabe, sugando o idealismo de jovens jornalistas ou a resistência heróica dos mais velhos. A ordem agora é ser pop. Hã-hã. Pop? Papito! E por aí vai.

Li o jornal quase inteiro e chorei. Chorei em degradê, chorando por sentimentos diversos, da dor à raiva, da solidariedade à indignação. Quase vomitei depois, mas fiquei um bom tempo tentando descarregar toda a minha náusea. Não brotou flor da náusea depois da leitura. Não sei onde a flor foi parar, decerto os espinhos da sardinha do almoço a sufocaram. Dessa sardinha que nos fazem engolir todos os dias, com ou sem sal, frita ou assada, pescada em mares turvos de ondas grotescas e afogantes. Afe, ranhetice. Afe.

Dor. Dor pelos 11 deputados colombianos mortos por alguém que não assume a autoria -- as Farc alegando que é culpa do governo, que eles morreram no fogo cruzado, o governo alegando que as Farc estão manipulando as informações. As fotos dos 12 deputados seqüestrados há cinco anos -- cinco anos!!! -- estavam nos jornais. Apenas um sobreviveu. Olhei aqueles rostos. Aqueles rostos todos. E chorei. Não suportei. Chorei. Chorei e chorei. Para onde vai a Colômbia? A Colômbia vai para algum lugar? Chorei pelos colombianos todos, que fazem seu voto pela vida diariamente, que buscam a dignidade, que ainda crêem em seu país, que pagam seus impostos, que também estão sob fogo cruzado. "Guerrilha diz que houve tentativa de resgate."

Dor também pelos inocentes mortos ou mutilados pela violência nas cidades brasileiras, nos campos brasileiros, nas tribos brasileiras, no sertão brasileiro, mutilados pelas injustiças brasileiras, no Brasil inteiro. Para onde vai esse país? Que país é este? Haiti é aqui? Aqui deve ser pior que o Haiti imaginário de capacetes azuis ansiando pela seleção brasileira de futebol.

Dor pelos iraquianos inocentes que morrem diariamente. Pelos afegãos. Pelos africanos todos. Pelos chineses que não estão nas estatísticas de desenvolvimento econômico veloz e reluzente, ou melhor, que estão literalmente na base desse desenvolvimento às custas de miséria e quase-escravidão, mas que não aparecem quando o assunto é PIB ou ONU ou Davos ou qualquer sigla internacional. O mesmo para os indianos em igual situação. Dor por palestinos e por israelenses. Pelo haitianos. Pelos chechenos. Pelos curdos. Dor clichê, dor legítima, minha dor, a humanidade doendo toda, por dentro e por fora de mim e do mundo. Dor pelos que ardem de dor. Dor pelas crianças nascidas de estupros realizados nessas guerras contemporâneas, como na Bósnia, no Sudão, no Congo... Dor por todos os que estiveram na mesma situação das crianças de "As Tartarugas Podem Voar". Dor por todos os que estiveram na mesma situação dos personagens de "Hotel Ruanda". Dor por todos os que viveram o que a protagonista de "A Vida Secreta das Palavras" viveu. Independentemente do mérito artístico desses filmes e de outros tantos, ao menos eles nos tiram um pouco do nosso torpor -- torpor egoísta? torpor altruísta? torpor ignorante? torpor intolerante? torpor mesquinho? torpor idiota? torpor defensivo?

Indignação. "O presidente de Israel, Moshe Katsav, aceitou ontem renunciar ao cargo. A decisão faz parte de um acordo no qual Katsav se declararia culpado por vários crimes de assédio sexual em troca do arquivamente do acusações mais graves -- como o de estupro de funcionárias." Peraí. P-R-E-S-I-D-E-N-T-E? Ok, ele é homem como qualquer outro, mas... será que o cargo não lhe daria uma responsabilidade ética, moral, humana, cívica...? Acho que sou démodée, sou de um tempo em que nós todos, seres humanos, éramos humanos. Aliás, creio estar equivocada. No fundo, devemos ser bárbaros domesticados. Já não sei mais. De todo modo, que horror. Estupro não é nada, então?

Indignação. Polícia de Londres desmonta carros-bomba. Tristes desses seres que precisam de bombas para fazerem valer seus protestos. Que precisam destruir vidas de outros para fazerem valer as suas. Que precisam decapitar para mostrar (ou fingir) que têm cabeça.
Me lembrei de uma peça linda, um monólogo do grande ator e palhaço Ésio Magalhães, que ficou em cartaz no Folias durante um tempo em 2006. Chamava "wwwparafreedom". Soldados são enviados por alguém para livrar um povo do comando de um cruel ditador. Em nome da liberdade, tais soldados têm o direito de bombardear o tal território inimigo. Bomba com bomba se paga? Na peça, as bombas eram de chocolate. A doçura desmontava a brutalidade.

Raiva. Raiva, raiva, raiva.
Quem, um dia, bradou com coragem (referindo-se ao Congresso Nacional): "são quinhentos picaretas com anel de doutor?" Esse bordão virou música. E faz tempo.
Quem carregava na própria a história a história de milhares de brasileiros, que saíram de um sertão ou de um agreste sofrido e maltratado para tentar vida melhor, vida digna, na cidade grande, que foi líder sindical numa época em que os sindicatos eram de fato representativos e pulsantes, que engajou-se na política em prol de ideais como trabalho, justiça e igualdade?
Não sei mais quem.
Eu choro de raiva.
Em 27 de outubro de 2002, eu vestia blusinha vermelha, o dia inteiro com essa tal de blusa vermelha, eu fui ao cinema com duas amigas assistir ao "A Promessa", de Margarethe Von Trotta, depois fomos comemorar na Paulista com mais milhares de pessoas a eleição de um certo Lula.
Em 2006 eu me recusei a votar em alguém ou num número qualquer.
Quando resolvi ler o jornal inteirinho, encontrei a notícia que, infelizmente, eu já esperava: "Lula e ministros saem em defesa de Renan." Me senti ultrajada. Críticas à Polícia Federal, ao Ministério Público, à impresa, a mim e a você. Lula me criticou. Lula me criticou porque eu acredito na ética, no respeito humano, porque pago meus impostos, porque sou obrigada a votar mesmo não querendo, porque sou cidadã brasileira, porque não quero financiar Legislativo e Executivo corruptos. Saiu em defesa de Renan Calheiros? Esse mesmo Calheiros cara-de-pau da era Collor! Collor: fui cara-pintada não manipulada (ah, sim, havia tanta manipulação na época daquelas manifestações... isso me enojou. A perda da inocência: 'ei, garota, aproveite para se filiar ao partido PWWZ...contribuição mensal em cinco vezes sem juros, porque juros são coisa do FMI...' >> essa última parte é ironia minha, claro), ajudei -- acho, achava, hoje já não sei -- a tirar o Collor do poder, e o "povo" e/ou as empreiteiras, Gautamas e Valérios da vida, o puseram de novo...

Mais raiva.
Mais raiva.
Quase rasguei o jornal. Devia ter rasgado.
Estou obsoleta?

Menina ainda, voltava do colégio nos idos de 1984, e acompanhava, junto com meus pais, pela TV as manifestações no Anhagabaú em prol das Diretas-já. Não entendia direito o que se passava no país naquele momento, mas sentia que era importante. Naquela época, naquela idade, sonhei em um dia discursar para multidões no Vale do Anhangabaú. Parecia crucial, parecia necessário, parecia vivo. Em 85, lembro quando brincava no playground do prédio enquanto o presidente -- finalmente, um presidente -- Tancredo agonizava no hospital. Um avião passou rasteiro. Uma amiguinha: acho que o presidente morreu. E ele realmente tinha morrido. "Coração de Estudante" na voz de Fafá de Belém. Meus ouvidos ainda escutam.
Achei que eu começava a fazer parte da História. Na escola, estudava os gregos, os romanos, os navegantes europeus, os conquistadores portugueses e espanhóis, a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, a ditadura. Agora, eu estava na História.
Mas acho que me enganei.
Sou de um tempo que não está sendo captado pela imprensa. Nem pelos governos. Nem pela pedra que tomou o coração de tanta gente.


E a flor não brota dessa náusea toda. Merda de náusea. Merda.

terça-feira, 26 de junho de 2007

A Descoberta das Índias (ou Quando nossas caravelas se cruzaram no Cabo da Boa Esperança)

Como na época das grandes navegações
Ambos se lançaram ao mar –
Mar de divagações, mar de experiências,
Mar de sensações, mar de efervescências.
Eram navegantes ou piratas?
Amantes ou meros entusiastas?
Bem, bem, bem:
Só a História dirá, lhes dirá.

Estavam ambos do outro lado do Atlântico e,
Quando se encontraram,
Algo como o Tratado de Tordesilhas:
Aqui termina o meu corpo, aqui começa o seu.
Essa é você, este aqui sou eu.
O primeiro beijo veio volátil,
Surpreendido pela realidade além-mar, além-céu,
De onde veio esse beijo? Veio tão rápido!
Nem falemos de conquista;
Era mais uma parceria, um desbravar conjunto
E curioso por selvas e veredas e gelos e praias
E grutas e pequenos montes e grandes montanhas.

Havia um acordo tácito – digno das Nações Unidas –
De fazer a paz, de fazer o amor,
Mesmo que a guerra fosse possibilidade escondida
E estivessem tão solícitas as tropas de um
Em relação às tropas do outro:
Isso, isso, isso. Faz assim, por aqui.
Siga-me. Como é bom!

Costas, planícies.
Peitos, quase planaltos.
Pescoços, abismos, oh, abismos.
As fronteiras começaram a desaparecer,
Cataclismo!
Suores, salivas, minhas mãos,
Seus pés, nossas pernas,
Sou agora sua extensão,
Você é minha cisterna.
Quantas estrelas surgiram naquela noite
(Era noite? Era dia? Estrelas havia.)
Avante, cidadãos!
Nenhum ferimento – apenas cicatrizes
Misturadas: testa, pescoço, pulso, ventre,
Todas, nenhuma. Avante!
Sorrisos, suspiros, delírios, sono.
Só uma vez mais, de novo.
O lençol azul brincava de oceano,
Calmíssimo, juntando os amantes.

Mas eles eram também navegantes.
E, como em toda a história das navegações,
Ou se cria um país
Ou se transforma um continente
Ou se circula circunda o planeta
Nossos esfuziantes piratas
Crêem que descobriram um novo mundo.
Um mundo sem fronteiras,
Fora do mapa e das respostas.

Porém, o que fazer?
Propostas?

Terra firme ou horizonte?
Palmeiras, casas de telhado azul,
Planos retilíneos, vulcões inativos?
Lar, doce lar, rotina?
Ou seguir adiante, onde o mar acaba,
(Se é que acaba)
Onde o céu começa,
(Se é que começa)
Onde ambos se aglutinam?

Separam-se, vestem-se, despedem-se do lençol azul.
Esquecem o passado amante-entusiasta,
Novomundista e iconoclasta.
E deixam para os incautos alunos secundaristas
A inóspita tarefa de tentar entender –
bem antes da hora, talvez –
Os bastidores do heróico período
Das grandes navegações.

domingo, 24 de junho de 2007

Ainda esse tal de D... e outras suspirações dominicais

Ainda havia sol na manhã deste domingo, que começou epifânico como todos os domingos, todos os meus domingos. O exercício: criar uma partitura corporal que reverberasse as palavras de um poema com base em uma imagem sugerida a priori. O corpo em plena sintonia com a linguagem e ambos, corpo e linguagem, expressando um estado onírico – um estado que não se antepunha ao corpo, mas era criado com ele; um estado que não surgia do poema, mas ganhava forma, literalmente ganhava forma, com ele. Foi bonito ver as palavras reverberarem no corpo, o corpo criar sua partitura, deixar o movimento trazer a emoção e a emoção contagiar esse movimento, essa reverberação, esse dizer. Salvador Dalí com Fernando Pessoa; Marc Chagall com Lia Luft e Pablo Picasso com Mário Quintana. E é de Quintana a estrofe abaixo, tão pertinente para minha pesquisa intuitiva sobre esse tal de D:

“Só o desejo inquieto, que não passa,/ Faz o encanto da coisa desejada.../ E terminamos desdenhando a caça/ Pela doida aventura da caçada.”

Você já deve ter vivido essa experiência, seja como caça desdenhada, seja como caçador delirante. E tudo bem, humanos que somos, aprendendo a amar amando, a desejar desejando, caçando e sendo caçados. A medida exata desses sentimentos e sensações todos talvez nunca venha, mas a medida equilibrada é a que, talvez, faça toda a diferença. Não sei. Às vezes nos relacionamos com o Outro sem estar em contato com ele de fato. Nos relacionamos com o Outro de nossas fantasias e projeções, um Outro imaginário, criado pela mistura de nossas carências, de nossos afetos e – sim, ele! – de nosso desejo. Assim, ao dialogarmos com esse Outro fantasioso, nos esquecemos da pessoa que o Outro é de verdade. Uma pessoa de carne e osso, de sangue e lágrimas, que suspira, que transpira, que se cansa, que se amansa, que se enerva... É possível haver sintonia de almas – e, como conseqüência, sintonia de corpos e fluidos, de espírito e de pensamentos, de caminhada e descobertas, uma verdadeira sintonia – quando os dois indivíduos não se enxergam, posto que estão em mundos distintos (um na fantasia, outro na realidade)? E a partilha, num caso como esse, como se dá – se é que se dá? Todo ser humano quer ser visto. E visto em sua plenitude de ser humano, não em sua projeção no mundo das idéias de outrem. Bacana ver-se personagem, saber-se figura da fantasia de alguém, porém isso tem um limite (ao menos, para mim). Uma coisa é encontrar encanto no Outro, mas um encanto brotado unicamente do desejo do indivíduo. Outra coisa é aprender a se encantar com o Outro tal e qual ele é.

Eu, ser vivo, conseguiria me relacionar com Rímini, ser fictício criado por Alan Pauls em “El Pasado”? A Lóri de Clarice talvez, idem para a Capitu de Machado ou de Luiz Tatit, mas a Lóri Capitu que sou aqui, do outro lado do computador, na vida cotidiana, com seu vento frio, trânsito, metrô cheio, panelas por lavar, ralo entupido, dor na lombar, pasta de dente no canto do lábio... não.

Quintanestrofe me fez lembrar também de dois livros fenomenais, maravilhosos, impactantes: “Reparação”, de Ian McEwan, e “O Que Eu Amava”, da Siri Hustvedt, mulher de Paul Auster. Ambos tratam, cada qual por uma via diversa, um enfoque distinto, um estilo, personagens fortes, sobre o desejo. Em última instância, sobre esse obscuro – nefasto às vezes, ressuscitador em outras – desejo. Sabe que tenho medo de relê-los? Fui de tal forma arrebatada pela leitura, uma sofreguidão, uma vontade de devorar tudo de uma vez até a última linha, que não sei o que poderá acontecer na segunda leitura. Mas o êxtase dessa primeira vez está aqui, registrado em meu corpo, reverberando em minha alma.

E aí eu penso: a Briony de McEwan, a Briony menina, tinha o olhar muito fantasioso e ainda um tanto ingênuo para a vida, para o desejo. O Leo de Siri, por sua vez, tinha um quê de antropofágico e um certo respeito, uma ligeira auto-repressão por esse desejo. Quem aprendeu a medida, não sem antes ter derrapado um tanto, foi o Ulisses de Clarice Lispector. No início, ele parece um tanto arrogante, meio blasé, quase distante. Na verdade, ele, muito experimentado, já sabia algumas das armadilhas desse derededê e se mantinha sereno e morno a fim de que Lóri também fizesse suas descobertas, até que Lóri estivesse pronta. Ele soube esperar. Ela quis aprender e não teve medo do risco.

Reverberações, partituras. Sintonia de verdade. Uma imagem? Um verso? Que tal uma mistura do “Beijo” de Gustav Klimt com um poema de Hilda Hilst – talvez este: “Te amo como as begônias tarântulas; como as sementes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras; a cruz na testa lerdas prenhes; dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.” (de “Lucas, Naim”).


Pode vir a frente fria, chuva e nublados, pode ventar frio, pode fechar a cara e o tempo. Continuo viva e vívida, já que sou um ser vivo. Faço um versinho, se necessário.


P.S.: São Paulo e Santos de novo no campo, no palco. Hugo acaba de ser expulso, mas o Tricolor paulista ganha por 2 a 0, gols de Aloísio e Dagoberto. Ainda faltam uns 20 minutos... vejamos. Frio na barriga. Que aventura é acompanhar jogo pelo rádio, ainda mais a Jovem Pan! Ai, que aflição! Oba, expulso o Adaílton. Dez contra dez. E nós com dois gols a mais.

Esse tal de desejo obscuro. Freud explica? Complica?

E aí mais um filme. Nórdico. “Além do Desejo”, da dinamarquesa Pernille Fischer Christensen. Recém-separada, a durona Charlotte – dona de um salão de beleza – muda-se para o apartamento de cima ao de Veronica, jovem transexual sensível e deprimida. Aos poucos, as duas estabelecem uma relação que vai da cumplicidade ao encantamento, enquanto tentam lidar com os receios e os desejos advindos disso. A grande questão aqui é que a atração e o carinho dependem menos da opção sexual de cada uma delas e muito mais da “sintonia de almas”. O longa é narrado em atos, cada qual com uma espécie de introdução, o que dá uma dimensão épica à (re)descoberta da sexualidade pelas duas personagens.

Uma outra faceta do desejo – o que pulsa em cada uma dessas figuras? O feminino de ambas, o masculino de ambas, o sinal trocado? Como surge a cumplicidade e de que lugarzinho recôndito e miúdo e talvez úmido e um tanto quente e quem sabe vermelho com tons arroxeados ou rosados sai essa tal cumplicidade? Que vira, será, desejo? Desejo de quê, exatamente? Desejo para quê, exatamente?

Bem interessante.
Recomendável.
E, seguindo nessa leva de desejos nórdicos, uma co-produção sueco-dinamarquesa, que une questões de “Infiel” (leia abaixo, no outro post) e de “Além do Desejo”: trata-se do novo longa da Susanne Bier, “Depois do Casamento”. Para manter o programa humanitário que desenvolve numa região pobre da Índia, Jacob precisa voltar à Dinamarca para encontrar um rico empresário que pretende lhe fazer uma polpuda doação. Mas o que seria apenas um encontro de negócios provoca uma virada na vida de ambos. Porque... conto ou não conto? (Você pode parar por aqui. Vou pular uma linha, assista ao filme e volte depois. Ou então, abra mão da surpresa, mas me prometa ver o longa até o fim!)

Jacob teve um affair com a mulher desse rico empresário. Desse relacionamento, uma criança, uma moça. A moça se casa – e, depois do casamento, descobre quem é seu pai verdadeiro. Jacob também não sabia que tinha uma filha. Ele, na verdade, se sentia pai de Pramod, garotinho indiano a quem ele prometeu voltar tão logo fosse possível. Mas Jacob também faz promessas na Dinamarca. E?

A interpretação de Mads Mikkelsen, que fez o vilão do pôquer no último 007, é impressionante. Aliás, assunto puxa assunto, aquela cena do Daniel Craig peladão sendo torturado... u-uh!

A pergunta permanece: há como explicar o desejo? No sentido mais puro da palavra e do sentimento e da sensação e do então?


De “Menina a Caminho”, livro de Raduan Nassar, conto “O Ventre Seco”:
“Você me levava a supor que o amor nos nossos dias, a exemplo do bom senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo. Aliás, só mesmo uma perfeita distribuição de afeto poderia explicar o arroubo corriqueiro a que todos se entregam com a simples menção deste sentimento. Um tanto constrangido por turvar a transparência dessa água,há muito que queria te dizer: vá que seja inquestionável, mas tenho todas as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor.” (p. 64)

Esse obscuro desejo. Freud explica? (2)

Assistia a “Infiel”, da Liv Ullman, com roteiro do mestre Bergman. Revia, na verdade, já que, ao zapear a TV a cabo nos antigamentes, às vezes pegava o filme andando. Nunca o tinha visto inteiro, do começo ao fim, linearmente, e com a possibilidade de voltar nesta ou naquela cena para conferir novamente o diálogo – e quantos diálogos maduros, extremamente maduros, quando não duros embora doces ou delicados na aparência – e as rimas visuais da atriz-cineasta (magnífica em “Persona”, entre tantos). Gosto, gosto muito. Pois então, eu o acompanhava e ao mesmo tempo refletia sobre as obscuras motivações do desejo. Desejo é vontade? Desejo é libertação ou liberdade ou liberalidade ou n.d.a.? Desejo é tesão? Desejo é sangue fluido de oxigênio ou pesado de gás carbônico? Aquele limite exíguo e invisível entre o que se suporta e o que não se suporta, entre o que é seguro e o que já não mais tem suporte.
Marianne havia tirado todas as mantas de cima das fragilidades e fraquezas e temores e angústias de David. Também doía para ela, mas a dor passou a alimentá-la, então ela não percebeu. Às vezes, o arrependimento vem bem em cima da hora, quando você recém-ultrapassou a linha e constata que o outro, aquele ali, desnudo na sua frente, não vai agüentar seu peso sobre ele. Mesmo que o peso seja de uma leveza ímpar, mas é insuportável. E aí você nota que, em vez de o sangue acelerar dentro de você, ele diminui o passo, os vasos se contraem, você se contrai toda, vem a compaixão, uma tentativa de “compensar” aquela nudez tão cara e tão difícil e tão amedrontada que se expõe para você. E aí nada flui, a nudez se torna mais forte e mais violenta, você enxerga tudo como se tivesse uma lupa imensa, vê todas as ondulações da pele, os poros, as cicatrizes diminutas, vê a camada de gordura, vê o músculo, enxerga então o osso e aí, exausta, entrega-se à compaixão e não ao homem que está ali, porque ele não está ali, ali estão as angústias dele, os remendos dele, os fragmentos dele. Porque você pegou no osso, você trincou o osso com seu peso, você foi longe de mais para alguém que só podia de menos. Culpa do desejo? Do que estamos falando, afinal?
“Uma pessoa tomando espaço dentro da outra”, diz Marianne. “É inexorável. É assustador.”
Mas Marianne também havia tirado as mantas de Markus. E dela mesma. E, quando disse a frase acima, referia-se, talvez, ao amor. Amor? Peraí. Por que tudo o que não entendemos direito é amor? Markus usou a seguinte metáfora: “Dois velhos amigos que estavam casados havia muitos anos decidiram que estavam cansados de viver. Levaram suas pílulas de dormir para a cama, deram-se as mãos e morreram juntos.” David não suportava o insuportável. Marianne não acreditava no insuportável, mas acabou rendendo-se a ele. Markus simplesmente, em toda a complexidade do sentimento, não suportou.
Filme longo para adultos de fato que não se encontram em estado de euforia – porque ou a gente não entende, ou a gente se enche. Versão em DVD pela Versátil.

sábado, 23 de junho de 2007

((adendo-nada-a-ver-mas-não-quero-me-esquecer))

O caso Renan Calheiros e Monica Veloso me lembra alguma coisa de "Carreiras", que estreou nesta sexta-feira 22. O filme é bem interessante, atual, corajoso (com seu baixíssimo orçamento e captação em digital), tem em Priscila Rozenbaum sua âncora -- no duplo sentido -- e é dirigido por Domingos de Oliveira (que, reconheçamos, não é bom ator; travado em cena, tem uma paleta de tons de interpretação bem reduzida...). Mas a passagem do senador, bem, chega a ser tão... tão... real que...

Aliás, várias passagens do longa lembram vários personagens da cena político-jornalística brasileira. Num país saído de uma ficção mal-escrita e com erros ortográficos aos borbotões, são os filmes e os livros que dão o toque de realidade. Tsc, tsc.

Esse tal de desejo. Freud explica?

Um encontro profissional.
Tom de voz convencional.
Psicanalista e jornalista –
A princípio, uma conversa previsível,
Sem pistas.
Mas aí falaram de paixões.
Ela perguntou, ele respondeu,
Os olhares imaginando todas
As entrelinhas, os subtextos e contextos.
Que pessoa mais interessante,
Pensaram ao mesmo tempo,
Em silêncio, interiormente ruborizados,
Com medo de terem revelado
Muito deles mesmos.
Décadas de vida os separavam,
Mas o vigor emocional os tornava tão próximos,
Quase íntimos,
Obscenamente íntimos.
Ele ficou curioso,
Ela ficou encantada.
Quiseram ver-se de novo,
Mas ele não sabia como dizer.
Tampouco ela.
E, então, o lampejo.
Na impossibilidade de domar a alma humana
Seja com divãs, seja com reportagens,
Ambos decidiram lançar-se
Ao precipício das convicções mais profundas.
Ao mesmo tempo indagaram:
― Quem é você, afinal?

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Enquanto a música resistir, eu me entrego de corpo e alma

A descoberta auditiva do dia: a trilha sonora do filme "Estamira", assinada por Décio Rocha. Especial atenção às belíssimas faixas "De Hoje em Diante" (04), "Estou indo Embora" (07) e "Triste Beleza" (14). Fecho os olhos e me enxergo Capitu, a sereia do sul, desfilando seus olhos iluminados por mares nunca dantes navegados -- e sem um Bentinho-casmurro à espreita, mas com vários Bentinhos-sussurros à espera. Me vejo Lóri indo à feira e deliciando-se com as cores e o frescor tão eróticos das frutas e das verduras e dos legumes (um já prenúncio dos sabores que eles lhe reservam). Na junção dessa Capitu e dessa Lóri em mim, torno-me, eu mesma, um espaço mágico de possibilidades, despertares, navegações, com cataventos e briluz.


CONTEMPLAÇÃO
(para as Estamiras da vida e seus Marcos Prados, Décios Rochas e parceiros de olhar e delicadeza.)

Mundo, mundo
você parece tão
barbado perdido irreconhecível
cabisbaixo culpado imundo
Ô mundo
amante fiel na sua infidelidade
clichês aos montes em seus discursos
ourives de causas moldadas mudadas
Velho homem acabado
tão criança
desnorteamento e confusão
(Já é de manhã)
Insegura malandragem
criminoso puro incriminado
muito mundo, demais
Precisa de banho,
carece sol, tapa na cara
Menino sentado na calçada
comendo um sonho gostoso
da padaria do Bairro da Luz.

Divagações de uma sonhadora. A ressaca dos mares.

Breves reflexões compactas depois de mais um dia de filmagens e figuração (na verdade, minha participação foi uma ponta – uma ponta anônima de uma atriz em fase de crescimento. Mas eu me diverti e vi, sob um outro ângulo, como nascem os filmes, além de me descobrir com maquiagem. Como nasce LóriCapitu-para-adultos: uau!).

*
EXCESSO DE PROVAS? QUE SE DANEM.

Na manhã de quarta-feira, saindo de um consultório, ouvi quase sem querer a música “Quase sem Querer”, do Legião Urbana, hino que marcou minha adolescência e seguiu fazendo sentido durante a década de 20 e, agora, ao escutá-la novamente e assim tão inesperadamente, aos 30 e, me trouxe um sorriso ao rosto pela constatação de perenidade. Perenidade de pertinência da canção, perenidade de sua reverberação em mim, perenidade de certas questões que vão e vêm com constância, com uma constância cíclica, eu diria, a cada início ou recomeço. Quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém. Não quero mais saber dessas provas, mas ainda há um desejo difuso e confuso e disperso e reverso de provar que eu não preciso provar nada. Aos poucos, me desvencilho. Daí, procurei na pilha bagunçada de CDs o “Dois” e redescobri “Índios”: “quem me dera, ao menos uma vez, como a mais bela tribo, dos mais belos índios, não ser atacado por ser inocente.” (Acabei de me lembrar de um documentário belíssimo, plástico e poético, pungente e doce, cinema de verdade: “500 Almas”, do Joel Pizzini. Deve estrear em breve. Recomendadíssimo a todos os que concordam comigo e com o Renato Russo: quem me dera não ser atacado por ser inocente.)

*

TEMPO-TEMPESTADE-IDADE-TEMPERATURA-DURA

“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo: temos todo o tempo do mundo. (...) Temos nosso próprio tempo.” (RR, no “Dois”, ainda sessão revival)

Essa reflexão eu já tinha dividido com amigos mais chegados:
>>>Nos primórdios dos tempos, no tempo fabuloso dos começos, uma Lóri-Capitu-em-formação assistiu, impávida e muito atenta, ao jogo entre Chronos e Kairós. E, naquele momento, ao estrear no mundo das engrenagens, fez a opção por torcer por Chronos. Comprou camiseta, bandeira, corneta. Torceu, torceu. Até que a paixão por Chronos esfriou, e já não fazia mais sentido manter-se devotada a ele daquele modo. Foi quando ela redescobriu Kairós. A redescoberta foi tão arrebatadora que ela também comprou camiseta, bandeira, corneta, sem medo de ser chamada de vira-casaca. Lóri-Capitu-de-agora sabe que, um dia, vai apreciar esse jogo sem ver nele uma competição; nesse dia, gostará tanto de Chronos quanto de Kairós e vice-versa. Mas, por enquanto, ela não hesita em grudar um pôster de Kairós na parede e suspirar por ele. Kairós oleleô, Kairós oleleá. Por conta disso, constatações muito interessantes apareceram.
Por que correr tanto? Por que me apressar, ultrapassar o tempo das coisas? Planos feitos na era Chronos precisaram ser adaptados à fase Kairós. Sem contar as curvas da vida, é claro. Ei, psiu. E as epifanias, brotando aos montes. Alô, olha aqui. No tempo fabuloso dos recomeços, agora. <<<


P.S.: Me lembrei daquele poema “Instantes”, atribuído erroneamente ao Borges, que se tornou um hit (até eu, na inocência de meu início de inserção no sistema capitalista-produtivo-engrenal, o achava simpático). Hoje, discordo completamente dele. Se eu pudesse viver minha vida novamente, seria mais feliz? Andaria descalça? Tomaria mais chuva? Comeria mais brigadeiro na panela? Me entregaria mais ao amor? Arriscaria mais? Seria menos bem comportada? Não perderia oportunidades? Escreveria um livro, pintaria um quadro, tomaria gelatto na Piazza Navona? Pegaria o primeiro avião com destino à felicidade? Ora, bolas. E por que não começar a fazer isso já? Por que esperar até a decrepitude para lamentar-se do excesso de “nãos” dados ao longo da vida? Tsc, tsc, na minha opinião, mais uma postura equivocada das pessoas-defendidas.


*

À DERIVA. MAS HÁ SEMPRE UM PORTO À SUA ESPERA, MESMO QUE POR MOMENTOS.

Trecho de “Até o Dia em Que o Cão Morreu”, de Daniel Galera (em outro momento, comento o filme que o Beto Brant e o Renato Ciasca fizeram inspirados nele):

“No entanto, ela me encarava sorrindo, com os mesmos olhos que eu encontrava antes nas manhãs, um olhar que nos conectava e expressava que éramos parte um do outro. É difícil imaginar sensação de maior conforto e serenidade do que esta, que surge da ilusão elaborada de que fazemos parte da vida de uma pessoa a ponto de estarmos verdadeiramente unidos, de tudo estar bem se o outro estiver por perto, se apenas nos for dada a chance de saciar os desejos e interesses um do outro, de tolerar um ao outro quando sacrifícios forem necessários e deixar que todo o resto se foda, se destrua e morra, porque não haverá problema. Aquele olhar dela era uma manifestação perfeita dessa ilusão confortadora. Durava pouco, apenas instantes, como qualquer êxtase, mas era eficaz.” (p.81)

“Mas desisti de pensar nessas coisas, apaguei as luzes do apartamento e me deitei do lado dela. No momento, eu tinha alguém pra proteger, e isso era novo.” (p. 45)

Eu quero ser uma slava! (Ou como uma mulher-criança-palhaço se comove)

Acabei de sair de um sonho, ao vivo, com cores, em que pude tocar e no qual fui tocada, espiritualmente tocada, emocionalmente acariciada, sentimentalmente ninada (logo mais embarcarei em outro, o sonho dos sonos dos justos, daqueles que fazem figuração em filmes e ficam o dia inteiro em pé por causa de uma cena pequenina e passageira que, sabe-se lá Deus e o diretor e o cara da montagem, se entrará no longa-metragem ou não. De todo modo, Lóri começou sua longuíssima jornada, uma jornada de looooonga metragem, metragenzíssima, rumo à Palma de Ouro, hahaha, sem perder o bom humor ou a cara de pau ou até a modéstia. Hahaha. Ei, duvidou e quer apostar?)

O sonho sonhado e acontecido aconteceu naquele lugar feio e frio e artificial que é o Citibank Hall, em Moema, Sampa ‘Citi’. Para comprovar que, a despeito de toda a feiúra e frieza e artificialidade de nossa vida contemporânea, o sonho acontece, sim, pode ser bonito, sim, é envolvente, sim, pode ser sonhado coletivamente, sim. Foi um sonho repleto, repleto de sins. Uma sucessão de momentos oníricos, suspíricos, surpreendentes e comoventes.

O nome da criança: porque se tratou de uma criança. Uma criançona, uma criança brincalhona e ainda inocente, sem elaborações alquímicas de como mentir para o papai ou barganhar as vontades diante de mamãe. Uma criança em espírito de criança e corpo de show, com um nariz vermelho gigante, pés imensos e olhos de lince. O nome da criança, então: “Snowshow”, da trupe do palhaço russo Slava Polunin. A gente sententendendo antes de entender racionalmente. E isso é magnífico.

Sabe aqueles sonhos que a gente sonha quando criança, especialmente quando sonhamos acordados? Ou aqueles quase-sonhos que imaginávamos momentinhos antes de dormir na infância tenra e temperada com baunilha e palmadas? Ou nossos sonhos de agora, mas sonhos de agora desprovidos de elaborações intelectuais, receios diversos, arrogâncias inúmeras e peso, muito peso? (Como há gente pesada nesse mundo. Mesmo com bom humor, comida light e balança em descenso, a pessoa pesa pesando tanto que eu às vezes – se é uma pessoa amiga – preciso dar uma volta no quarteirão para recuperar o ar e as costas e espairecer!).

Voltemos aos sonhos, ei, não distraia. Conseguiu (re)imaginá-los?

Da expectativa ao riso, do riso ao suspiro, do suspiro à comoção (quase dor), da comoção (quase dor) à expectativa de novo e do novo. E o novo sempre vem. E é muito, muito belo.

O mais sensacional do espetáculo dos palhaços russos, além de toda a autenticidade da atuação – sem palavras e com um trabalho corporal e cênico de provocar o êxtase – é conseguir incluir a platéia no sonho. Quer dizer, pouco a pouco, o show leva a platéia a acreditar: esse é o nosso sonho, porque é mesmo. Mas depois, pouco a pouco também, a gente entra no sonho! Experimentamos um retorno àquele estado de infância-infância, de ternura, baunilha, xixi na cama de vez em quando e farinha láctea.

A delicadeza de certos números é impressionante.
Não, palhaço não é instrumento de risadinhas mecânicas e ocas. Ha-ha-ha (pra desencargar a consciência e descarregar algum elemento fétido que apavora a cabeçorra naquele dia). Não. Clown vai além do humorzinho diminutivo e da esquete cômica: clown é a experiência profunda de autenticidade pelas vias do humor, do ridículo e da disponibilidade, é um estado de abertura total para a vida, uma conexão com seu eu mais puro e mais íntimo, mais criança, mais sapeca, mais espertamente ingênuo. É por isso que eu quero ser palhaça. E, quem sabe, uma palhaça na linha slava.

Teve riso e aperto no coração nesse meu sonho que muita gente também sonhou junto. Ainda vejo as bolas coloridas saltando sobre nossas cabeças e o bilhetinho da amada rasgado que virou tempestade de neve e nos cobriu de estrelas no fim. Snow. Mas não snow de gelo, e sim de quentura, de coração quase dia de sol sem tanto calor.

E tudo no seu tempo. E com seu tônus. E com seu tamanho. E com sua densidade. Slaslaslaslaslaslasla... islas, no, somos continentes!

Eu quero a pureza da resposta das crianças.
É a vida, é a vida, e é bonita!


P.S.: Leveza devia ser ensinada dentro de casa.
P.S. 2: Descobri que muita gente não tem tempo para as descobertas da vida. Na verdade, tempo virou desculpa. As pessoas, na verdade, têm medo. Medo de um monte de coisa, especialmente de terem de viver de verdade. Tsc, tsc.
P.S. 3: O Slava’s Snowshow parece uma continuação cênica e clownesca do livro da Adriana Falcão, “Mania de Explicação”. Sim, ele de novo! Um livro de criança que me arrebatou, vejam só. Ah! Ah! Ahhhhh!

Papo de sommelier

A safra de 1984-85 tem despertado meu interesse nos ultimíssimos tempos.
Nada como o vigor de um fruto adequadamente jovem e suficientemente envelhecido.

Mas não desprezo os encantos de um sabor mais encorpado de um legítimo representante da década de 70.

Hmm.
Hmm.
Hmm.

"No princípio dos tempos, havia o vinho e Lilith. E isso era bom."

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Pequerrucho bem-me-quer (ou só é cego quem não quer ver)

Diz a menina-filósofa da Adriana Falcão:
“Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue.”

Falávamos em chama e eu, durona, não me preocupei tanto com o combustível.
Mas aí fez click. Num momentinho entre a noite e a madrugada, a alma tocada pela sensibilidade da arte e da vida, houve o click. Ouvi o click, sem muito esforço. Reverberou no vizinho, no prédio vizinho, no país vizinho, fez bum! splash! crash!, um estrondo.

E desse estrondo brotou uma tal necessidade –
Aquelas de sentir acima do limite, uma quase oração,
Um choro de encantamento, um rio em ebulição –
Chamada saudade.

Não sei o que acontece comigo, mas é um momento de mel e sangue (nas palavras de Caio Fernando Abreu, em “Pequenas Epifanias”) delicadamente colocado na minha frente, na frente de meus olhos outrora incapazes de ver. Tampouco sei ao certo o que vejo, não minto, mas sinto e sinto tanto que às vezes os cinco sentidos se multiplicam em dez, em vinte, de uma vez.

E faz uma semana que fui à oftalmologista, que me disse que a miopia havia aumentado, que o astigmatismo havia aumentado, eu com medo de enxergar ainda menos. Estou vendo mais agora.

No filme “Vida Secreta das Palavras”, da Isabel Coixet, as palavras – as não-ditas, especialmente – ganham um rumo inesperado de coração a coração. Quando saem, aos borbotões, viram canhões e flores e retalhos e frangalhos. E se misturam todas: as particulares, as coletivas, as diminutas, as imensas.
Com você, esse passear de desejos-e-instantes-e-dores-e-sabores-e-florescências-e-fluorescências-e-sorrisos-e-persistências com as palavras-valise acontece também na minha vida! E isso é lindo!

Ah!
Senti suspiro-lembrança-imagem de rever “Janela da Alma”, de João Jardim e de Walter Carvalho; parece redundância mas não é. Ver, não ver, como ver, por que ver. Temos o que ver hoje em dia? Sim, eu tenho a você.

O momentinho está tentando fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue. Ah, peninha. Suspiro suspiros. Saudade.

Maioridade

Hmmm, além de belos ísquios e escápulas, um crânio bem torneado, o mocinho é um sedutor de primeira. Nas palavras dele mesmo, um putão.

Cuidado, moço: quando as mulheres de 30 estão na fase Capitu, os olhos ficam mais e mais oblíquos e obsequiosos. Porta semi-aberta do cofre forte. Ui!

Sem entender nada, entre o livro de anatomia e o dicionário, ele enfrentou o dilema: seguir menino ou ser homem?

Hmmm, isso é osso para cenas dos próximos capítulos...

Amigo é coisa pra se guardar

Momento de pausa na profusão ebulitiva e ebriosa de srta. Lóri Capitu.
A mocinha aqui quer homenagear uma grande amiga, amiga de fé, irmã camarada, a srta. Leoa de Noronha. Como um dos personagens de Julio Cortázar, Lóri Capitu vomita coelhinhos aos momentes, momentaneamente. Mas são fofos esses coelhinhos. E olha, eu diria, alguns deles bem jeitosinhos.

À amiga, então
VIZINHA DE CORAÇÃO


Menina sozinha tateando a parede:
Cadê minha janela?
Menina sozinha tateando o mundo:
Será que ninguém me entende?

A epifania. Miudinha, quase pífia –
por isso, imensa, intensa –
revelação de Deus
(nas palavras de Caio Fernando Abreu)
encravada no dia a dia diário
diametralmente dinamitado diante,
de antemão.
Vulgo: estado presente de espírito,
Ou hoje, ou agora, ou então.

E ela estava lá.
Entrou, não quis mais sair.
Gostou.
Pulou a janelinha, pulou amarelinha,
Veio ninar a menina sozinha:
– Não precisa mais fugir, eu estou aqui.

A menina que tateava tabitateou
Nas artes de se descobrir deixar
E, com tal descoberta, não titubeou:
Que bom que a gente vai poder
Desde sempre, a partir de então,
Daqui para frente
Partilhar.

E foram muitas e tantas e quantas
Descobertas. Ah, se foram.
Novas paisagens!
Novos personagens!
Novos cenários!
Novos itinerários!

A menina não era mais sozinha
Porque agora tinha uma vizinha
– de coração.

Foram voando até a Praia do Leão.
Usaram DVD-verso-e-fita,
Transformaram-se em mulheres de chita.
Tomaram vinho. E quentão.

Pularam sete ondinhas,
Riram juntas,
Choraram juntas,
Quando o cachorro do John Wayne mordeu uma,
Quando o sujeito histórico-ou-diegético-ou-ontológico abandonou a outra.
Quando Itamar Assumpção parou de cantar
E anjinhos com cara de palhacito não quiseram mais pousar.

Canjica, geléia de morango, pãozinho de tapioca.
Tapioca!
Sarau, cara de pau, chope black, buraco quente.
Ei, não mente!
Quantas histórias as duas arranjavam
Cada qual com seu buraco quente.

E a menina não mais sozinha
E sua do coração vizinha
Passaram a enfeitar a vida da gente
A filmar a vida fervente
Cada qual com seu olhar,
Sua câmera, seu cantar.

Se você fechar bem os olhos,
Se você ouvir a alma sussurrar
(porque o ego grita – e isso irrita),
Vai conseguir ouvir o coral das duas meninas
E amizade pura em todo o seu pulsar.
Tum, tum, tá, tá, tá.

Feminino com arte, ou "As Nove Partes do Desejo"

PERFORMANCE

Uma confissão em cinco tons.
Ou como Maria das Graças
se tornou Maria das Dores.


*


Que experiência assistir à Clarisse Abujamra em "As Nove Partes do Desejo". Pela atriz, espetacular, transitando de personagem para personagem (são nove) apenas com a mudança do pulsar, esse pulsar que desencadeia todo o resto. Assim também é em nossa vida: não precisamos montar nossos gestos, nossas expressões faciais, nosso tom de voz, nossa postura a priori. Por que de fora para dentro? Estamos querendo o quê com isso? É o pulsar daquele momento, daquele instantezinho, que desencadeia toda a nossa performance existencial no aqui e agora. Lindo, lindo, lindo.


De novo: que experiência assistir à peça "As Nove Partes do Desejo". Pelo texto, traduzido e adaptado por Clarisse, escrito pela Heather Raffo, atriz americana filha de pai iraquiano. A matéria do Estadão, de tempos atrás, da época da estréia, contou: "Quando indagada se havia escrito a partir de depoimentos, [Heather] respondeu: "Eu não entrevistei, eu abracei cada uma dessas mulheres, vivi com cada uma delas."" Ah, mas que banho em muitos jornalistas, dramaturgos e roteiristas. Trata-se de uma peça polifônica -- em mais de um sentido de polifonia -- em que nove mulheres iraquianas, todas muito diferentes, todas peculiares, todas "reais", exprimem-se em seus mais íntimos desejos e preocupações e sentimentos e opiniões e. Conte a história de sua aldeia e você contará a história do mundo. A peça é política, é documental, é humana, é feminina, é arquetípica. Que mundo é esse que vai além das notícias da BBC, da Reuters, da CBN? Que vai além de documentos emitidos pela ONU? De aviões e bombas? Quem são essas pessoas? E nós com isso?

Mais uma vez: que experiência é assistir à "As Nove Partes do Desejo". A concepção cênica de Márcio Aurélio. Um peça à altura de um documentário plástico e poético, melhor que esses documentários à la Globo Repórter que andam sendo produzidos por aí. A delicadeza do cenário e a delicadeza da luz. A chama fina e firme de cada coração. Volto ao pulsar: o pulsar de Clarisse, o pulsar das mulheres iraquianas, o pulsar de todas nós mulheres do mundo, o pulsar de Clarices e Lóris e Capitus e Ariadnes e Sofías e Madalenas, o pulsar do ser humano, o pulsar da humanidade de hoje. Dessa humanidade que se corrói, dessa humanidade que se destrói, mas que também ama, paradoxalmente, caramba, essa humanidade sabe amar. Às vezes, ama com ódio. Que desperdício, que egoísmo, que pena, que dor. Quê! Quê! Quê! Cadê você?????
Parabéns, Clarisse. E obrigada por ser tão honesta. Ontem, num bate-papo rápido com a platéia, ela disse: "Me sinto plena com essa peça e que bom estar plena. Nessa peça, sou a Clarisse cidadã e a Clarisse atriz, ambas protestando contra a injustiça das guerras."

*

E salve "Maria", "Maria" de Abel Ferrara, filmaço, pungente, dilacerante, transcendente, imanente. As personagens interpretadas por Juliette Binoche, com a maestria de sempre, também são mulheres que estão na peça de Heather, de Clarisse. A Maria Madalena e a Marie, ambas, cada qual em seu tempo, a seu tempo e, graças a Deus, em tempo. Elas dizem SIM, elas dizem sim à vida, ao amor, à humanidade, à feminilidade, à transcendência que não exclui a imanência, à alma.


Diz um dito islâmico que Deus dividiu o desejo sexual em dez partes; deu nove às mulheres e reservou apenas uma aos homens.
Feminino com arte. Sempre.
A mulher em milhares.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Improlucha

Ambos artistas –
da vida, antes de tudo.
Com o pé no chão,
A boca disponível,
Sensores puramente instintivos.

Ele bebia cerveja,
Ela rodava a saia no bailado eletrizante.
Ambos entregues,
Dionisíacos,
Ao prazer. Puro e simples prazer
De estar. Aqui, lá. Aqui e lá.

O melhor papel é não ter papéis.
Eu quero todas a sensações possíveis
No fluxo mais intenso desse instante,
Desse exato instante.

Improvisar é preciso,
Sempre é preciso,
Representar não é preciso.

Ele, ator no palco.
33 anos. Argentina. Nome e sobrenome,
ditos assim, com ar borracho,
cerveja na mão, olhar trôpego,
riso sôfrego e cheeeeeeio de vontades.

Ela, atriz na platéia.
Idade não revelada, “X” (pra que o nome?).
Era de São Paulo, mas queria ganhar o mundo.
Garrafa de água com gás, goles naquela cerveja,
Cheeeeeia de disponibilidade.
Vontade de não desgrudar os lábios
Nem fechar os ouvidos para o blablablá
Sem sentido, mas tão sensualmente dito.

– Chica, quien sos?

Tudo improvisado,
Até chegar alguém –
Como em todos os momentos
Sempre chega alguém que se acha
No direito de comandar uma representação.
Esse papel é meu,
Com licença.
Eu sou a estrela, eu sou a diretora,
Eu sou a mocinha, eu, eu, eu...

A maior de todas as dignidades
É despedir-se com elegância do público.
E assim foi:
A única coisa que X não improvisou
Naquela madrugada pulsante
Foi o cumprimento à platéia.

Houve aplausos depois.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Mania de Explicação. Ou... as rosas falam, sim! (eu ouvi)

Era uma mulher que sabia das coisas.
Às vezes não sabia que sabia, o que sabia, se sabia. Sentia. Simplesmente sentia – e de várias maneiras, e de maneiras muitas vezes diferentes, quantas vezes surpreendentes, sem sentido aparente. Sentindo, desgarrava-se de conceitos e defeitos, teorias e teoremas, explicações superficiais e justificativas banais. Sentia apenas, mesmo não sabendo. E tudo estava lá, guardadinho, dentro dela, pulsando junto com o restante do corpo, sorvendo vida com o restante da alma, sonhando junto.

Como o protagonista masculino de “Still Life”, do Jia Zhang-ke. Anos e anos à espera, anos e anos de sonhos e expectativas e vontades guardados, impregnados em seu corpo. Veio a barragem de Três Gargantas, a inundação, as casas e as ruas submersas. Na torrente das águas, a torrente dos sentimentos. Dezesseis anos se passaram! E mais quantos meses, quantas semanas, quantas horas, quantos minutos. Modéstia na busca, nem sabia até onde. Até que. Até que. E por quê? E agora? E por que não? Então é sim. Assim.

Muitas descobertinhas descobertas em tão pouco tempo. Nudez? Nudez desconhecida de um corpo que a cada dia mudava porque se descobria e descobria a si próprio descobrindo-se? Oh.

A primeira delas veio de si mesma: uma conversa casual gerara um convite inocente. Ao contar para a amiga, olha que curioso, na segunda-feira eu..., a inocência já desimpregnara o convite e ela tomou um susto. Sentiu antes de entender. Depois soube sem querer. Soube surpreendendo-se. Mas... mas... mas... As peças não se encaixavam, porque o convite não tinha nada de mais. Mas era ela a convidada, na verdade. O destinatário havia habilmente convidado a remetente. E era ela. Oh.

A segunda foi no domingo pela manhã. “Mania de Explicação”, de Adriana Falcão, livro teoricamente para crianças. Livro cheio de infâncias, infâncias acumuladas, não nostálgicas, mas infâncias-mitos-fundadores de nós mesmos. Quase chorou de tanta simplicidade e beleza. Conexão imediata com sua menina na mulher que é hoje e às vezes não admite (não admite a mulher, ainda que acolha carinhosamente a menina). Identificação imediata com a mulher que é hoje e já foi menina daquele jeito. “Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa.” Menina que achava o mundo lá fora meio complicado e tentava deixá-lo mais simples e honesto imaginando para si mesma. Essa menina virou uma mulher que sentia para entender o que se passava no mundo cá dentro. Adriana Falcão segue contando sobre a menina: “Existem vários jeitos de entender o mundo. Ela tentava explicar de um jeito que ele ficasse mais bonito.” (A mulher não resistiu e chorou. Era ela! Esse livro era sobre ela!) “Essa menina pensa que é filósofa, as pessoas falavam.”

Reflexões da menina:
“Solidão é uma ilha com saudade de barco.”
> A mulher esteve se sentindo ilha dia desses, mas depois do autoconvite (na verdade, tinha sido um convite para si mesma. Por que não?), era barco. Barquinho chacoalhando...
“Vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele.”
> Algo acontecia lá dentro dela. Tentou abrir as janelas.
“Antes é uma lagarta que ainda não virou borboleta.”
> Mas havia um prenúncio de asas furtacor!
“Indecisão é quando você sabe muito o que quer, mas acha que devia querer outra coisa.”
> Por que a gente sempre quer querer outra coisa em vez de?
“Sentimento é a língua que o coração usa quando precisa mandar algum recado.”
> Tinha aparecido um idioma estranho. Ainda estupefata, tentando decifrar aquele código que soava desconhecido, mas se parecia com algo. O quê?

E, à noite, então, veio a terceira descoberta. “As Rosas não Falam”, na voz potente de Virgínia Rosa, com um arranjo tão ousado quanto febril e vibrante. Acordeão! Por que as rosas desfolhadas precisam provocar dor? Por que os novos botões não merecem orvalho também? Por que sempre cantar a música de Cartola com coração dilacerado, a estima roçando o chão, um peso de amor amargo amaro amassado? Por que não esse acordeão festivo? A surpresa! A surpresa!
E Virgínia seguiu cantando, cantando para a mulher que sabia, sentadinha na segunda fileira, sentada mas dançante, tão dançante essa mulher, porque ela sabia -- porém fingia não saber, ou não queria, não tinha coragem, mas seus quadris, suas pernas, seus pés, tudo nela, seus olhos... denunciavam que ela sabia e sentia querer saber, sim.

Descoberta, completamente descomprimida, comprida, comprida, quase alcançando o céu. Não cabia em si, que doideira, o vento ventava nela e a espalhava. A vida ficava estranha, mas mais bonita. Ela sabia o que era isso. E se abria toda para essa abertura de vida que acontecia ali, naquele instante, mesmo que nem tudo fosse exatamente sabido nem igual ao que foi da última vez. Mas ela tinha uma explicação, explicação igual àquelas da menina-filósofa que carregava no livro comprado às pressas e que também carregava dentro de seu coração. Só que essa explicação era segredinho dela para ela mesma.
Que surpresa!


E sorriu.
Sorriso desses a gente emoldura até vir o próximo.

domingo, 17 de junho de 2007

Corpos, nossos corpos

"O Livro de Cabeceira", de Peter Greenaway. A força vital que brota de nossos corpos e de nossas palavras. Suspiro, escrevo, suspiro de novo, daí pinto meus lábios de cor de vinho, como se criasse um hiperlink em mim mesma, para abrir outras leituras e possibilidades de navegação. Mais que lábios pintados, esse é um novo parágrafo.

Ele, um dia, se surpreendeu comigo: palavras flamejantes! Ora, as minhas? "Muito calor, janelas abertas, 'Faça a Coisa Certa' do Spike Lee na TV, pedras de gelo," Terminava frases em vírgulas, esperando que eu mordesse a isca e lançasse outro e mais outro anzol. Pescadores os dois, atacantes amigos, alternando as jogadas a fim de que o outro também tentasse o gol. Às vezes, provocado, escrevia mensagens enormes, vívidas, tão íntimas, tão ele-mesmo, como se precisasse se revelar mais e mais, talvez com medo de se esquecer, sim, talvez com medo de que aquele ele, daquele dia, fosse implacavelmente apagado pelo tempo, pelo dia de amanhã. Se as minhas palavras eram flamejantes, as dele eram inebriantes. Ele queimava, ardia por minha causa, eu me embriagava dele, nele. Até o dia em que as palavras escritas -- sim, nossos diálogos eram basicamente escritos e não havia nada de sacanagem virtual ou coisa do tipo; nós dois manejávamos de tal forma as palavras, os sinais de pontuação, os silêncios, que tirávamos de vocábulos banais qualquer inocência e dávamos a eles tesão e torpor --, então, até o dia em que as palavras escritas só encontraram saída na concretude, no encontro presencial de nossos corpos. Suor, cheiro, tom sobre tom. Ele sobre mim. Eu e ele. Evidências, perguntas sem respostas. Ardemos juntos, nos perdemos juntos. Uma madrugada quente de vento gelado, as contradições todas ali, o ápice e o cruzamento de estradas que seguiam em direções opostas: eu da razão para a emoção, ele no sentido inverso. Naquele dia, horas antes, ele havia visto "Dias Selvagens", de Wong Kar-Wai, e reclamado de um certo pó-de-arroz sobre os desejos latejantes tão latinos. Indignou-se: vá até o fim, então! Foi o que ele fez na madrugada. Reconheçamos: Kar-Wai havia matado nossa charada. Os trilhos, naquela curva noturna e solitária, se cruzavam, mas depois mantinham a trajetória distantes, opostos, desafiantes, quase inimigos. Ora, que bonde poderia passar ali?

Meses antes, antes de minhas palavras flamejarem, tinha me falado que eu lembrava o filme "Lucia e o Sexo", de Julio Medem. Eu que me definia pelas palavras. Eu que me nutria dessa energia tão sensorial da vida. O prazer que vem da literatura e do sexo, das metáforas escritas e do diálogo entre os corpos, a tal mecânica corpórea e lingüística dos fluidos. Dias depois, depois que os trilhos se cruzaram, fomos ver "Pecados Íntimos", de Todd Field. Nós dois pecadores? Ou tínhamos nos absolvido mutuamente? Fugíamos de nossas estradas? Eu queria sair da literatura, viver mais presente-contundente, e ele, andar de skate, deslizar mais, gozar mais? E aí a coisa toda desandou: não sabíamos se havia sido um capricho, um desejo, uma explosão atômica, um fogo de artifício, um haicai ou um romance, um início ou um fim. Eu preferi o início. Ele, o fim. Eu continuei exalando sexo e escrita. Ele optou pela distância, pelo não e pelo silêncio.

Agora, tendo revisto "O Livro de Cabeceira", confirmo que metáfora poderosa é essa de escrever sobre o corpo: criar uma obra orgânica e sensorial, uma poesia e uma prosa que brotam sensualmente, que transpiram, que exalam, que estremecem. Obras frias, ausentes, sem "pele", encantam apenas cerebralmente. E arte é vida. Nagiko, a protagonista, em seu próprio diário de cabeceira diz isso, o prazer do sexo e o prazer da literatura. Forças vitais, anima. Não acredito mais em palavras sem vida, sem tesão, que nascem assépticas, in vitro, sem terem se alimentado de placenta. Tampouco acredito em sexo sem uma veracidade de troca entre os corpos envolvidos. Não é qualquer corpo, caramba, é aquele, naquele dia, daquele jeito, com aquele pulsar e com aquele falar.

Um sorvete agora, já. Ahhhhh... Suspiro, escrevo. Ou talvez eu deva... chupar uvas, beliscar morangos, comer melancia? Aliás, há também "O Sabor da Melancia", do Tsai Ming-Liang, que, quando passou na 29a. Mostra, chamou-se "Nuvens Carregadas". Hmmm... Esse merece todo um capítulo...

sábado, 16 de junho de 2007

Tudo começou com um "sim"

Reticente. Blog? Alta exposição. Não quero uma Second Life. Quero a minha vida, com cara de vida mesmo, mas com toda a porção de vida invisível que me convém. Porém, porém...

"Enfrentados con um límite sentimental, ese punto sin retorno en el que una pasión imperiosa les exige que cambien de lengua, los personajes de las óperas dejan de hablar y cantan, los actores de las comedias musicales dejan de caminar y bailan. Sofía escribía." (El Pasado, Alan Pauls).

Hoje virei Sofía, porque sempre fui Sofía neste sentido. Oi. Muito prazer, eu, Lóri Capitu, vulgo a Sofía del Pasado, deliro.

Quarta-feira, Boca Juniors dispara 3 a 0 no Grêmio. Chocolate Crunch. E foi assim que ele fez, depois do jogo: crunch. (Fui buscar no dicionário Cambridge. Crunch: v to crush (hard food) loudly between the teeth, or to make a sound as if something is being crushed or broken. n a difficult situation which forces you to make a decision or act.)
Sei, sei. Estar diante de Lóri-Capitu-Lóri de novo não é fácil. Mas ele foi valente: crunch. Justificou-se, falou, falou, defendeu-se, mas, como o Grêmio, capitulou. Tomou de 3 a 0. No dia seguinte, apesar de minha pele clara e fina e sensível e disponível, apenas o queixo carregava as marcas do crunch. Nas veias e artérias, pulsavam inquietações.
Na quinta, greve do metrô. E, então,

Trilhos eternos
Trens pouco ternos
Eu, sozinha,
Num vagão à deriva - e descarrilhada

Trilhos contínuos
Trens taciturnos
Noturnos
Eu solitária
Num vagão à deriva
- descarrilhada, estirada à estrada de -
Um olho no reflexo
perplexo de minha face-faceta-facínora
Subterrâneos
Túneis e mais túneis
Entre pausas e movimentos
Na lonjura da proximidade
Próxima, porém, distante.
E sem, e sem.

Eu ali, ele ali.
Lua, sombras, sensações.
Conexões inexplicáveis e instantâneas
Colagem de coletâneas - as minhas, quietas, as dele, falantes.
Instantes, conexões discadas.
Hoje, porém, ultrapassadas.
Na banda larga sem trilhos
De uma greve de coragens.
E sem, e sem.

Ah, suspiro e deixo. Crunch-substantivo. Sofía total.
Ah, ah, ah.

Nuovomondo, de Crialese, ou A Gênese de Lóri

Foi num domingo de dezembro de 2006. Quer dizer, houve uma sexta-feira à noite antes desse domingo. Estava assistindo à peça "A Falta que Nos Move", que permite a participação voluntária do público. Um jovem andrógino, muito sensível, muito simpático, grande, gordinho, decidiu ler um texto que havia escrito durante à tarde daquele dia. Falou do poema que está na faixa 3 de "Drama 3o. Ato", de Maria Bethânia. Falou de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector. No dia seguinte, no sábado, o livro já estava nas minhas mãos. Mas foi no domingo, naquele domingo, que comecei a lê-lo. Havia chegado uma hora e meia antes de a sessão de "Nuovomondo", de Emanuele Crialese (Leão de Prata em Veneza), começar. Centro Cultural São Paulo, eu era uma das primeiras da fila. Talvez, ele disse, talvez eu apareça. Se der. Nenhuma promessa, apenas um esboço de desejo. A hora ia passando, a fila seguia parada, ele não aparecia. E eu devorava as páginas do livro, sentindo o calor daquele prenúncio de verão, e a Lóri que estava adormecida dentro de mim começava a se revelar. Na tela, a saga de Crialese. Numa época em que a Itália não era um propriamente um país, mas uma colcha de paeses e a América surgia como uma terra de promessas de todos os tipos, estávamos todos nos lançando ao mar: a inglesa Lucy, o italiano Salvatore, a brasileira-eu-mesma... E aí:
Aprendizado dos Prazeres

Pensei assim:
Eu, na fila do cinema,
Lendo “O Aprendizado ou o Livro dos Prazeres”,
Mergulhada na intensidade de Lóri
E nas intenções de Ulisses.
Eu, na fila do cinema,
Vendo-me desnudar cada vez mais,
Cada vez que a leitura avançava,
Eu toda revelada,
Dissecada, dilacerada.
E aí você,
Nesse calor de dezembro,
Sol, algum vento, luz, muita luz,
Você apareceria, assim, de repente,
Na minha frente.
Ufa, cheguei, pensei que não fosse dar.
Os minutos passavam enquanto eu suava,
Enquanto Lóri me dominava,
Enquanto eu me passava por Lóri.
Que bom que você chegou,
Quase na hora, olha a fila, logo mais o filme começa.
Era o Novo Mundo.
Esperançosos imigrantes que cruzam o oceano
Em busca de.
Eu, imigrante, em busca do oceano
Em você.
Espera-lhes uma terra imaginada,
Imaginam uma terra esperada.
Eu? Eu me lanço nesse solo desconhecido,
Nesse mundo novo que é você.
Eu, mundo antigo, 31 anos,
No oceano dos desejos, lampejos, antevejo
Um território inexplorado,
Desconhecido, recém-descoberto,
22 anos, alguns meses, poucas palavras.
E aí, depois do cinema,
Livro da Clarice por terminar,
Pensei num vinho, mas disse um café.
Você me corrigiu: vinho.
Onde? Moro perto. Dez minutos.
Você: no seu apartamento.
Eu, você, a bagunça dentro de mim,
A bagunça fora de mim.
No vaso, rosas cor-de-rosa. Que eu me dei.
Nas taças, o vinho. Carmenère.
É a uva de que mais gosto.
Um beijo – com gosto de quindim com suco de laranja.
Outros beijos.
Com gosto de mate com leite, pudim de leite, whatever.
Mais beijos.
E as pétalas de rosa. Sua pele, minha pele.
Ulisses invade Lóri.
As rosas não enrubescem: presenteiam-se.
Mais vinho, mais beijos,
Lóri mergulha em Ulisses.
O novo e o antigo mundo se fundem.
Mais de 53 anos de histórias misturadas.
Olhos negros: eu choro.
Pele rosada: eu gozo.
Por que você não veio antes?
Demorei a me desfazer das histórias miúdas.
Eu tive medo de embarcar.
E eu, de te receber.
Você tem gosto de uva, adoro.
Você, de quindim.
Novo mundo.
Você me trouxe suas mãos.
Você me ofereceu possibilidades.
Cheiro de rosas, pétalas por toda parte.
Até no seu cabelo, eu digo.
E dentro de você, você me responde.
Só que a fila do cinema anda,
Você não chegou. E não chega.
E sabemos, o Antigo Mundo, Clarice
Lóri e eu, que você não chegará.
Abro o livro em qualquer página,
Ulisses divaga, ausente, frio.
Não, você não é frio.
Só não está interessado no mundo antigo,
Quer o seu, tão novo e reluzente,
Cheio de promessas diferentes.
Vejo o filme, não abro o vinho,
Vez ou outra ainda me lembro
De trocar a água das rosas –
Murchas não, mas tristes.
Eternamente tristes.
Outros livros, outras filas, sangrias.
Mais dezembros.
O mais estranho,
Apesar de tudo:
você ficou impregnado em mim.
Essa sua novidade, esse seu frescor.
E meus lábios guardam,
Indefectíveis,
Um suave gosto de quindim.

Foi assim, então, Lóri surgindo ao sabor de um quindim como na cena final de "Nuovomondo", completamente embriagada e envolta num sonho branco, leitoso e iluminado.