Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
sábado, 10 de março de 2012
solidão de menino
Pedrinho brincava com conchinhas, enquanto Ana mascava raivosamente um chiclete. O mar era ora suave e gentil (para ele), ora bruto e ruidoso (para ela).
Por que a mamãe não vai voltar?, muco e areia se misturavam no rostinho rosado, olhos grandes e escuros, o cabelo curto em desalinho, os chinelinhos molhados esquecidos lá atrás.
Porque ele não quer.
Que ele, o papai?
O papai também não vai voltar.
Mordeu a língua e sangrou. Cuspiu a goma manchada e respingou lágrimas na camiseta amarela de menina grande, com corpo em mutação. A existência queria fazê-la crescer à força, ela resistia, furiosa e indócil.
O castelinho de conchinhas subia, subia. Fazia fresco naquele meio de tarde, meio de semana, meio de vida, meio do nada: interrupção, elo perdido, página em branco no meio das folhas de um livro de letras miúdas, incompreensíveis. Dois perdidos numa tarde suja.
A mamãe foi para o mesmo lugar onde está o papai?
Não.
Ninguém escolhe a hora de crescer: a gente simplesmente cresce. Chega o dia em que, subitamente, a inocência se esvai. Assim, sem mais. Ontem, o mar era infinito e a areia, macia. Os minutos passavam indiferentes, e os problemas se resumiam ao gosto da sopa ou a hora de dormir. Hoje, o mar termina ali, a areia incomoda os pés e os olhos, tudo urge e os ombros doem de tanta responsabilidade.
Mas onde está a mamãe?
Com Deus.
Agora havia um segundo castelinho de conchinhas e uma frágil ponte de palitos de sorvete unindo os dois edifícios. O mar parecia avançar, a tarde parecia avançar, o tempo parecia ter abocanhado um bocado de vida. Da vida de ambos.
Quem é Deus?
Deus é o criador do universo, o senhor de todas as coisas, o chefe dos seres vivos e não vivos, quem apaga e acende a luz do mundo.
Ele é mau?
Sei lá, Pedrinho.
Acho que ele é mau, porque não deixa a mamãe voltar.
O garotinho, naquele instante, envelheceu um milênio. Olhou absorto para os desenhos que as ondas formaram na beirada da areia. Apertou os olhos para definir melhor os contornos das águas.
É. Ela não vai voltar.
Outro chiclete na boca, os dentes quase trincando de desespero, lágrimas inundando a camiseta amarela de menina grande, consciente de que já é grande. Era imensa. Maior que aquele oceano ali na frente. Pedrinho destruiu o segundo castelo de conchinhas. Quebrou os palitos de sorvete ao meio. Franzia a testa.
O papai está onde?
Papai. Palavra brega para ouvidos adolescentes. O cheiro de gelatina que vinha da cozinha. E agora, Aninha? De que sabor é? Aninha, que cabia no abraço daquele homem sorridente e descabelado, com camisas quadriculadas e bermudas de listas. Morango? Ai, papai, não sei. Acho que é de gelatina amarela. Qual fruta, Aninha? Maracujá! Um abraço. Pipoca com pimenta. Chega de pimenta, Aninha. Mas o papai pôs pimenta também, eu quero igual! Canta de novo, papai, canta de novo! Paquepaquepaquetá, pucopucopucolá!
Na puta que o pariu.
Que é puta?
Para de fazer pergunta.
Ela cuspiu o chiclete, ele chutou o castelo de conchinhas remanescente. Um silêncio solene de mais de um minuto. Nem piu, nem paz. E, então, o mar estalou: chuá. E ambos choraram alto. Ela furiosamente, ele convulsivamente. Tarde vermelha, estômago revirado, lembranças aos borbotões. Ah, solidão. A solidão experimentada às seis da tarde, aos cinco anos de idade, aos treze anos de idade, à beira-mar. Na ponta do precipício: isso, para vocês, é viver.
Por que ele foi embora?
Porque ele é um idiota.
Mas ele está com Deus também?
Não. Ele está na merda.
Fala a verdade! Onde está o papai?
Ele foi embora, Pedrinho. Ele não quis saber da gente. Nem de mim, de você, nem da mamãe. Esquece ele, caramba.
Os bracinhos ao longo do corpo, os pezinhos descalços e úmidos, o peito úmido, os olhos grandes e escuros e vermelhos e transbordantes, o desespero nuns quantos metros de altura, desolação, a boquinha aberta cheia de gritos doídos. As pernas ainda indecisas se de criança ou de adulta, a camiseta amarela de menina grande que não conseguia esconder os seios nascentes, o short molhado de mar e de sangue, um sangue intrometido que não tinha que estar ali naquele momento, naquele dia, naquela pessoa, naquele pedaço de universo.
Você está machucada.
Anos-luz. Algum professor tinha falado em anos-luz. A sabedoria em anos-luz.
Pois é. Estou machucada, sim.
Pedrinho foi até Ana e lhe estendeu os bracinhos. A irmã o acolheu num abraço terno e soluçante. Assim ficaram, até despontar a primeira estrela no céu.
Seu machucado dói?
Um pouquinho.
Tá ficando escuro.
A gente ficou sozinho, então?
Ficamos. Mas eu estarei sempre com você e você estará sempre comigo.
Eu sei, mas Deus não vai deixar a mamãe voltar.
Não.
Como é o nome disso?
Disso o quê?
Que a gente sente.
Agora, se fosse possível, queria aumentar o barulho do mar. Escuridão, abismo, sótão, nadez? As conchinhas dos castelos destruídos fazem crec, crec. Anoitece.
Solidão, Pedrinho. Isso se chama solidão.
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