Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
sanguessuga
Sedenta. Faminta. Insone. Ofegante. Cheguei à beira do rio, lambuzei a sola dos pés na areia quente, no barro ardente. Já passava da meia-noite e a terra conservava o fervor de dias inteiros escaldantes e intensos de ousadias. Suava. Eu suava enquanto sentia a água gentil acariciar meus tornozelos indignados. Não, eu me engolia, não, eu lhe dizia, não, eu contestava, não, eu escutava, não as ruas, as chuvas, os postes, os montes, não as lágrimas, os perdões, as voltas, os vultos, não então? Suava de haver corrido, suava de haver morrido e ressuscitado umas quantas vezes, suava de haver amado, amado desesperadamente, inconsequentemente, palavras grandes e longas, sentimentos solenes e urgentes, advérbios bem colocados e evocados com tanta compaixão. Havia, portanto, amado suntuosamente. E a grama que roçava meus dedos cheirava à cólera, cheirava à calma, cheirava a contradições várias, cheirava à alma. Meus pensamentos pesavam, sobravam, escorregavam de minha cabeça ofegante, insone, faminta, sedenta e espatifavam-se no asfalto da estrada nua e crua que acolheu o meu fugir. O meu desgrudar. O meu reinventar. Sobravam, portanto, gritos surdos e macios quase a ponto de escapar de meu coração:
Por quê?
Por quê?
E agora?
Cheirava-me à alma, cheirava minha própria alma em busca de consolo. Embebia-me na água do rio, mas morria aos pouquinhos de sede. Outra sede, não a sede de todo mundo, de todos os dias, de todos. Fêmea, explodia em sangue de vários tons. Todos meus.Todos repletos de sons. Tons, tons, tons. Sons. Tons, tons, tons. A decepção é marrom. A raiva é tão vermelha quanto o despeito e o desejo. O amor era lilás. Mas hoje, em meio à água-irmã, era toda sangue. Sangue, barro, areia, água. Meu útero jorrava sangue, jorrava indignação. Meu útero: o mais belo presente que poderia haver partilhado. Meu útero que lhe encantava visitar de tempos em tempos. Lugar sagrado de meu próprio corpo, templo de oferendas, onde ele entrava só quando era dia de lua e tempo de paz. E hoje havia luto, sangue e fluxos.
Paz. O mundo das águas é puro silêncio e reverberação.
Paz. Tudo passa. Paz. Meu corpo absorvia líquidos alheios, meus olhos aos poucos reaprendiam a repousar.
Os troncos úmidos e pegajosos da beirada ribeirinha foram gentis: era manhã quando me espreguicei, abraçada por mãos inventadas e firmes. Me protegiam da correnteza sem me tirar a leveza. Ainda tinha sede, ainda tinha fome, mas já não havia mais vermelho. O suspiro matinal tinha cor de abóbora: doce e suculento. E forma de broto: recomeço.
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