domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ressurreição



"... porque se seu mundo não fosse humano ela seria um bicho." (Clarice Lispector)

O dia em que você viu meus excrementos quase chorei. Corri para dentro do sótão de mim mesma e lá fiquei por horas, evitando comer, evitando abrir as janelas, evitando dissolver-me. Tentei purificar-me desesperadamente, sorvendo os tímidos e aquosos raios lunares que teimavam em invadir minha momentânea escuridão. Os dias seguintes foram densos de vergonhas e suores. Cavei caminhos subterrâneos apertados para me movimentar pela vida e evitar olhar nos meus próprios olhos e nos olhos alheios. Dormi mal, não suportei sentir os ruídos que vinham de minhas entranhas. Pois, diante de você, expus espontaneamente minhas mais íntimas fragilidades, restos daquilo que fui e não consegui digerir apropriadamente. Evacuei discursos, gritos, galhos, gomas, temores e sofrimentos perdidos, passados, confundidos, apodrecidos. Você viu meu avesso – e o avesso de meu avesso: meu recomeço. Se minha nudez havia deixado de ser pudica há muito tempo – as ranhuras do desejo que tiram os poros do lugar, você me dizia –, eu deixei de ser pura no momento em que excretei. Pequei e confessei, ainda que tenha me custado reconhecer minha sujeira, minha humanidade pastosa, os joelhos escuros, as unhas manchadas. Se houvesse vomitado, se houvesse regurgitado... teria sido mais higiênico e aceitável, mas não verdadeiro e inteiro. Chorei de verdade quando me senti no deserto, sedenta e faminta, em jejum completo, lambendo a areia das pedras, mendigando minha própria saliva e dor, sozinha e desamparada. Fugida das constatações de mim mesma, de minha imagem refletida em vidros, lagos e vidas. Mas o desamparo foi passageiro, porque você não foi uma miragem: a firmeza e doçura de suas palavras me abraçaram longa e ternamente por minutos plenos de planos. Vem, você falou, vem para a varanda. Vem, você repetiu, acolhe seu adubo, meu adubo, nossas fraquezas e as raízes de nossa perseverança. Fui broto abrindo os braços dentro da semente de casca fina naquele instante: toquei os grãos de terra, toquei a seiva do amor. Ressuscitei gente.

Hoje produzo leite, leite e fervor, fervor e calor. Nutro os frutos nossos – sem mais receios de excretar o que é excesso, quando é preciso.

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