era segunda-feira, ela não tinha expectativas expandidas além do dormir, comer, trabalhar, ler, sono, sede, fome, vontade, banho, suspiro, respiro, outro respiro, desta vez mais fundo. senta, levanta, reinventa. ah. reinventa! podia ter sido qualquer outro dia, de mais inspiração e menos mesmice, mas foi justamente aquele. naquela segunda.
fez um caminho conhecido: corredor, cozinha. abre a geladeira e lá estava ela, rosada e perfeita em suas curvas imperfeitas. clic. a gente ama o parecido, sempre, mesmo com a desculpa de buscar o diferente, o oposto, o avesso. a gente não assume, às vezes nem tem consciência. apenas segue, seguindo mesmo, o fluxo da vida, das interjeições e dos encanamentos existenciais. clic. assim foi com ela, ou com elas: encanto em primeira pessoa. um reconhecimento, uma identificação, um parecer-se. aquele róseo, meu deus. as mãos tremiam quando a lavava. um sentimento de quase pecado, de transgressão. era como se tocasse, tocando outra. outra! gênero: feminino. espécie: fruta. condição: sedutora. especificidade: madura, suculenta. oferta: comestível. opção: uma única vez. e com ela.
consumou-se demorada e languidamente a relação sensorial e cheia de frescor entre uma mulher de pele rósea e curvas imperfeitas e uma pêra de pele rósea e curvas imperfeitas. ambas brancas e lúcidas, entregando-se em mordidas ou bocados. uma boca e uma polpa. encontradas e realizadas. entregues ao desenrolar da cauda do tempo e das temperaturas. de uma delícia só. de um desbunde impressionante. pacientemente, respeitando cada instante, cada espacinho de ar entre uma mordida dada e um bocadinho cedido. ambas suas. elas. das duas.
ela, espécie mulher, sabia da opção. era uma única vez: um fazer-se eva em momento de lilith lá nos idos de sua entrega à maçã. uma mulher, depois de entregar-se a uma fruta, jamais seria a mesma mulher ou apenas uma mulher ou mais uma mulher. ainda mais com uma pêra. era ‘aquela que’, e sendo, preenchia o universo ao seu redor com sua peraltice de fêmea. um perigo.
não conseguia ir à feira ou ao mercado. nas bancas, as frutas todas a apontariam como adúltera se ela decidisse comprar meia dúzia de bananas, ou um cacho de uvas, duas laranjas, ou outras pêras. não conseguia mais encarar os sucos de caixinha, em especial os que estampavam pêras desbotadas e assexuadas, um acinte à magnitude das fêmeas. as sobremesas não lhe atraíam mais a atenção e, durante muito tempo, ela visitou hortas e pomares para entender a origem de todas as origens. chegou a dormir, cochilar, meditar, estender-se aos pés de pereiras, aprendendo vagarosamente a linguagem única das frutas-fêmeas. nem todas tinham pele rosada e aquelas curvas imperfeitas de tamanha perfeição quanto a sua. pêra havia sido única.
passaram-se nove meses, e ela descobriu-se prestes a dar à luz. tinha engolido as sementes, no afã da experiência, numa tentativa de ficar junto só mais um pouquinho. pariu uma flor que chamou de peralta e que plantou lá no jardim. peralta só abre de segunda-feira e parece que um dia pode virar árvore. ou fruta. ou mulher.
2 comentários:
uia! que vontade de comer uma pêra!
Pêras... quanta suculência, quanta doçura... Rigidez macia... Umidade seca...
Existem outras pessoas que adoram pêras...
espie:
http://charmene.blogspot.com
Charmene
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