A porta estava muito bem trancada. As janelas, implacavelmente fechadas. Nem fechaduras havia para não dar margem à invasão. Como é que o Ar novo entrava, então? Pelas frestinhas do tapete, do colete, das torneiras e dos ralos. Ar novo é sujeito teimoso, petulante, adora fazer cosquinhas nos calos. E Medrosinha, dia desses, estava lá, bem menos encapsulada, mas ainda tão escondida, garota bonita largada, displicente até com os próprios dentes. E, incerto mas esperto, Ar novo mal entrou e logo começou com as cosquinhas. Ai, meu Deus, tremia Medrosinha! O que vem por aí, o que será? Às vezes, Ar novo trazia vírus; em outras, notícias de Shangri-lá. Carregava esperanças, fragrâncias, mosquitos e sentimentos esquisitos. E foi assim que o “Invasor” chegou, de carona com um sabor, que o Ar novo espertamente para dentro empurrou. Veio bem devagarzinho e se chamava – olha que fofo – Amorzinho. Discreto e quieto, Amorzinho andava com as pontas dos pés. Queria surpreender Medrosinha, mas sem recorrer aos fáceis cafunés. Só que havia um porém: Amorzinho era invisível, parecia com ninguém. Mas também era surdo às desculpas que Medrosinha sabia usar tão bem.
Vou lhe contar que no início, ai que difícil, foi um jogo de esconde-esconde. Cheio de trombadas de bonde, ou película de espionagem: com direito a autossabotagem (de Medrosinha) e tentativa de ultrapassar a linha (Amorzinho). No entanto, aos pouquinhos, parece que o espanto virou encanto: deixemos de ser crianças, vamos nos dar um voto de confiança! Tudo podia soar perigoso, Medrosinha em pânico se via; mas Amorzinho era jeitoso e de conquistas ele bem sabia. A entrega foi poética e lenta, e esta que lhe conta tampouco é isenta. Foi lindo, muito lindo, ver esse encontro acontecer. Como sair de uma rota escura para, enfim, provar uma relação madura. Medrosinha de nome mudou; sabe-se Mulher em plenitude. Dentro dela, Amorzinho se instalou: no corpo, na alma, na atitude. Sempre é hora do Ar novo na vida circular; esta que lhe escreve ainda vai experimentar. Um suspiro, dois suspiros, tento a porta destrancar: oi, oi, você está me ouvindo, sr. Ar?
Um comentário:
Que legal!!! Deve ser a historia mais bonitinha que você já escreveu!
Gostei muito do ritmo que você colocou e, interessante também as "notícias de Shangri-la" , os "sentimentos esquisitos" e o fato de que "parecia com ninguém".
É clara a maneira como demonstra o poder da neutralidade do Amor, e de como uma gotinha dessa neutralidade nos faz oscilar. E essa sabedoria que dribla as nossas oscilações no menor tempo possível para realizar a mais improvável transformação.
Como se diz, "o Amor está no Ar". O Ar é o elemento do plano Causal, Impessoal, de onde vem todas as novas sementes evolutivas, também é o nível Anímico, Intuitivo, de onde brilha a Luz das suas inspirações mais finas.
Sim, eu também quero, mas no meu caso, eu teria primeiro que escrever a fábula da tromba d'água e do medrosão.
Obrigado !!
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