domingo, 27 de junho de 2010

coisas que esquecemos pelo caminho

Entre os sentimentos em desuso, amontoados num canto do coração, sentimentos esquecidos sob a luz escura dos fundos, alguns com certa poeira, outros com certo desdém, encontrei aquela ternura com caimento quase perfeito que descobri, em meio a poesias e exemplares da arquitetura franco-árabe, em 2006. Comíamos pistaches – não tão bons quanto os de Istambul – e falávamos de amor. Beijamo-nos em La Goulette, vendo o mar, o céu estrelado, promessas de um novo mundo. Perdida, entre quereres e decepções, entre ausências e silêncios alheios, estava a lembrança daqueles olhos azuis que me tiravam do anonimato e me nominavam: mulher. Talvez eu já tenha encontrado aquele cujo encaixe parecia exato, embora não fosse totalmente; mas, na imperfeição doce de nossas identidades, nos encontrávamos com nós mesmos e um com o outro. Ele, contudo, me enchia de porquês enquanto o que eu mais queria era desfrutar daquelas pequenas descobertas sensoriais que vinham à tona quando estava lá, a seu lado. Por fim, deu a lógica: eu aqui, ele... quem sabe. Sou eu quem guarda essa pequena trança colorida, iniciada em 2001, retomada em 2006 e ainda inacabada. No fundo do armário, quase mofada, sem utilidade definida.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

pequetita

(dos tempos de criança, mfv)

Era pequena, tinha bonecas, mas gostava mesmo de brincar com cotonetes. Ou o genérico bastonetes de algodão, tanto faz. O careca era o príncipe; a de cabelo comprido, a princesa. Às vezes, com o batom de mamãe, tornava a criada ruiva. Passava pasta no outro, fazia o irmão punk da alteza. Se esfregasse o algodãozinho no pó compacto, logo criava a moça má, que queria roubar o príncipe da princesa. O lago, formado por uma poça de água misturada a talco no tampo de vidro da mesinha da sala de estar, era turvo e tenebroso. Brincos e pulseiras faziam as plantas, as pedras, os pássaros. Já havia melancolia ali, naquela singela brincadeira de criança. Por mais felizes que as histórias terminassem, meus personagens nunca estavam 100% felizes. (Um moço me pergunta hoje: é possível ser 100% feliz? Uma moça me pergunta hoje: você consegue ser 100% alguma coisa?) Mas meus singelos bastonetes de algodão tampouco eram 100% infelizes. Eram melancólicos e solitários, ainda que a princesa ficasse com o príncipe no final, que a criada ruiva quebrasse padrões e se casasse com o punk, que a moça má virasse boa e criasse patinhos no lago turvo. Quando meus cotonetes se davam conta de que não passavam de bastonetes de algodão na mão de uma criança, bastonetes alijados de sua função primordial – limpar orelhas –, quando se viam sonhados, personificando personagens fictícios, davam-se conta de sua miséria coisífica, de sua pequenez no universo de existências tão imensas e importantes, de sua inutilidade, de seu carisma passageiro. Porque essas histórias sempre tinham um fim, o fim sempre estava próximo: é hora de ir à escola, (meu nome). (Meu apelido), jogue essas coisinhas no lixo, lave a mão e venha almoçar. E eu, naquela altura do campeonato soltando um suspiro longo, longo, fundo, fundo, mais melancólica e solitária que aqueles meros bastonetes sujos já sem condições de limpar a cera do ouvido, me dava conta – com as boas limitações de uma mente e um coraçãozinho infantis – de que eu era apenas uma criança que cresceria um dia, teria dúvidas filosóficas angustiantes, tais e quais às dos cotonetes, que ainda encontraria muitos laguinhos turvos pela frente e que talvez vivesse aquelas tais histórias de amor, sem a certeza de que terminariam bem.

sábado, 12 de junho de 2010

manjar branco

Diana apertou a mão de Clara, que retribuiu com um sorriso. Ambas imaginavam céus e sonhos no teto branco do quarto ainda mais branco em que Clara estava internada.
Te amo.
Nem os tubos, nem as cicatrizes, nem as manchas de relações passadas e ignóbeis causavam algum tipo de repulsa em Diana.
Te amo.
Os olhos oblíquos e aguados, agora opacos, outrora vívidos, de Clara retribuíram docemente os choros e a entrega de Diana. Não precisa dizer nada. Sinta, sinta, sinta que eu sinto, sinto, sinto também.
Impossível precisar quandos, comos e porquês. Uma tinha marido; a outra, uma agitada lista de parceiros casuais. Uma vivia entre violetas e begônias, distâncias e ausências; a outra lutava contra a escuridão torpe que, de vez em muito sempre, invadia armários, gavetas, malquereres e não-fazeres. No tempo elástico dos inícios, quando o amor ocupa pequenas brechas e deixa os minúsculos indícios, já instalado em ambos os lados, Clara se aconchegou no ombro dolorido de Diana e chorou suas feridas. As visíveis e as invisíveis. Ocorreu à Diana acariciar as mãos da amiga, tocar seu rosto, sorrir triste e cúmplice. Clara suspirou profundo, aproximou seus lábios daqueles outros lábios, e em segundos ambas se olharam extremas. Corajosas, mas reticentes, carentes e decididas, lançaram-se. Lançaram-se sem pensar, apenas sentindo, sentindo, sentindo. E não tinha mais como deixar de ali estar, naquele aconchego maduro e pleno de afeto, um mundo de janelas, jardins e ar fresco, de dois seres que se compreendiam muito bem. Extremamente bem.
Diana apertou ainda mais a mão de Clara, com uma delicadeza imensa, com uma presença intensa, mas apenas fiapos de uma existência agora fugidia conseguiram captar aquele gesto desesperado e dolorido de uma mulher em plena explosão de amor. Clara já se despedia daquele quarto branco, daquele teto branco, do sabor do manjar branco que Diana preparava quando queria fazê-la sorrir.
Com calda de ameixas...
Diana encostou seu rosto no de Clara para não perder um murmúrio que fosse. Já não havia mais quase cor no rosto de traços firmes, sobrancelhas grossas, longos cílios. Com calda de ameixas – desenhou Clara no ar, com dificuldade, com sonoridade, com a discrição das formigas miúdas. Diana chorava com ternura e dor, captando qualquer movimento daqueles lábios queridos, e concordando: é claro, um manjar com calda de ameixas. Para nós duas. Inevitavelmente, uma parte dela, Diana, ficou ali, naquela tarde, naquele quarto, naquele branco todo insosso, impávido talvez, muito distante dos dias felizes. Com calda de ameixa, Clara, com muita calda de ameixa.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

entre ela e o além-ela

(Pintura de artista de St.Brieuc, França)


Entre ela e o portão, muitas, muitas ratoeiras, armadilhas, arapucas, várias arapucas, plantas carnívoras, objetos pontiagudos, facas, pregos, areias movediças, fossos profundos, tubarões famintos, pedras incandescentes. Entre ela e o portão. Ou poderia ser entre ela e o portal, a janela, a linha, a fronteira, a muretinha, não importa. Entre ela e o limite dela, uma série de obstáculos perigosos e daninhos, pegajosos e desestimulantes, totalmente irritantes. Entre ela e o além-ela, um muro maior que o de Israel na Cisjordânia. Maior que a pedra no meio do caminho de Drummond. Maior até que o dilúvio na época de Noé.

A tralha, o monte de lixo, restos de restos, sobras de sobras, tudo isso foi se juntando ao longo do tempo, entre os ensaios de sair ou não sair, deixar entrar ou não deixar entrar. E o limite dela foi alargando, alargando, embora ela se enroscasse num casulo cada vez menor. Apertadinho. E, então, para atravessar todos esses desafios farsescos, saltar a Muralha da China, o arame farpado e a cerca elétrica da prisão de segurança máxima (de sua prisão privada de segurança máxima), precisava mais que uma corda, um bote, um jato, uma vara, asas de Ícaro, fios de Ariadne: precisava de um homem que lhe desse um voto de confiança. E a quem ela também lhe pudesse dar o seu. Con-fi-an-ça. Entre ela e o homem, o portão. E toda, toda, toda aquela montanha de nãos.

palavras sem cabimento

Dias e mais dias escrevendo a fio. Escrevendo tudo, de tudo, sobre tudo. Escrevendo receitas médicas, listas de supermercado, diários meus e de outros, cartas de amor e de desamor, textos acadêmicos e jornalísticos, histórias, fábulas, recadinhos para mim mesma, devaneios, desabafos, nomes de ruas, números de telefones, títulos de livros para não esquecer. Escrevendo e escrevendo dias e dias a torto e a direito, no avesso da carta, no vão da porta, na parede, na meia-calça, no papel higiênico.
Anos.
Me dei conta nesses dias e dias de escrita infinita que há anos escrevo uma história cujo fim não vou terminar de compor. Palavras, pequenos excrementos de meu ser marginal.

Mas a vida não cabe inteira nas palavras, sabe.
As palavras são imberbes diante do mundo, diante de mim. São inexatas. São indecorosas, são audaciosas, mas não carregam a vida inteira nelas, não.

Me perco de propósito das palavras quando acho que elas querem dizer mais do que realmente eu sei. Do que sinto. Do que salto. As palavras jamais subiriam um pico nebuloso e e se jogariam lá do alto. Fariam rima, é certo, riso talvez, mas não dariam conta de toda a imensidão desse universo compactado dentro de mim. As palavras se perdem cá dentro quando minhas sensações tocam o chão e o céu, quando me encego, me ensurdo, me emudo, emismemada – inventando neologismos e emprestando os que não são meus.

Meu Deus.
Por que então tanta escritura?
Deus tampouco cabe nas palavras que Ele mesmo ditou. Nas maiúsculas, nas minúsculas. Toda palavra é imperfeita. E eu fico aqui escrevendo, escrevendo, escrevendo, como se esse inconcebível quebra-cabeças fosse solucionar todos os meus problemas de coração. Mas vai, sim: escrever é minha humilde e datilografada salvação.

Tudo se escreve e me descreve: ela desfia, tece, costura, cozinha, pinta, borda, lambe, cospe, enrola, amassa, assa, passa, lima, pica, corta, estica, exala... tantas palavras quantas forem necessárias para se viver. Ela sou eu. Agarrei-me aos verbos, seduzida pelos adjetivos.

E continuo em minha febre de escrever tanto tudo todos em qualquer lugar tentativas, perseguindo a fragrância inexata que “certa palavra deixou no espaço que ocupou em determinado instante” como um profeta, um detetive, um legista, um geólogo, um obstetra, um atleta, um presidente, um crente, eu mesma silenciosa e aturdida.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

fabulinha fabulosa

A porta estava muito bem trancada. As janelas, implacavelmente fechadas. Nem fechaduras havia para não dar margem à invasão. Como é que o Ar novo entrava, então? Pelas frestinhas do tapete, do colete, das torneiras e dos ralos. Ar novo é sujeito teimoso, petulante, adora fazer cosquinhas nos calos. E Medrosinha, dia desses, estava lá, bem menos encapsulada, mas ainda tão escondida, garota bonita largada, displicente até com os próprios dentes. E, incerto mas esperto, Ar novo mal entrou e logo começou com as cosquinhas. Ai, meu Deus, tremia Medrosinha! O que vem por aí, o que será? Às vezes, Ar novo trazia vírus; em outras, notícias de Shangri-lá. Carregava esperanças, fragrâncias, mosquitos e sentimentos esquisitos. E foi assim que o “Invasor” chegou, de carona com um sabor, que o Ar novo espertamente para dentro empurrou. Veio bem devagarzinho e se chamava – olha que fofo – Amorzinho. Discreto e quieto, Amorzinho andava com as pontas dos pés. Queria surpreender Medrosinha, mas sem recorrer aos fáceis cafunés. Só que havia um porém: Amorzinho era invisível, parecia com ninguém. Mas também era surdo às desculpas que Medrosinha sabia usar tão bem.

Vou lhe contar que no início, ai que difícil, foi um jogo de esconde-esconde. Cheio de trombadas de bonde, ou película de espionagem: com direito a autossabotagem (de Medrosinha) e tentativa de ultrapassar a linha (Amorzinho). No entanto, aos pouquinhos, parece que o espanto virou encanto: deixemos de ser crianças, vamos nos dar um voto de confiança! Tudo podia soar perigoso, Medrosinha em pânico se via; mas Amorzinho era jeitoso e de conquistas ele bem sabia. A entrega foi poética e lenta, e esta que lhe conta tampouco é isenta. Foi lindo, muito lindo, ver esse encontro acontecer. Como sair de uma rota escura para, enfim, provar uma relação madura. Medrosinha de nome mudou; sabe-se Mulher em plenitude. Dentro dela, Amorzinho se instalou: no corpo, na alma, na atitude. Sempre é hora do Ar novo na vida circular; esta que lhe escreve ainda vai experimentar. Um suspiro, dois suspiros, tento a porta destrancar: oi, oi, você está me ouvindo, sr. Ar?

sábado, 5 de junho de 2010

* baú *

— Você ainda se comporta como adolescente.
Susto.


Falávamos sobre o amor.
Nem fazia uma semana que eu havia me deparado com um pequeno grupo de fios brancos, escondidos na parte posterior da cabeça, acima da nuca.


— Adolescente?
Olhos fixos e perdidos nas pernas estendidas sobre o banquinho. Pernas tortas de menina com o peso dos anos de uma mulher.


Falávamos sobre o amor. E eu sabia que ela tinha razão.
Que, ao andar sozinha, opção inconsciente mas tão confortável, eu avançara até subterrâneos e horizontes impensados de mim mesma, do universo a meu redor. Porém, nesse contato estreito com o homem, genérico do gênero masculino, talvez houvesse mesmo parado no passo seguinte à descoberta da alteridade. Susto. Uma mínima, quase imperceptível entrega, e logo o recolhimento. Não me movo de mim. Passo películas na qual sou a protagonista, acho que me apaixono, acho que sofro, acho que partilho, que interajo, que me transformo, tudo tão intenso. Nada, contudo, se passa. Não me movo de mim. Os tumultos e as ondas se limitam à superfície, enquanto vejo tudo lá do fundo, no silêncio absoluto, na solidão impassível.


Falávamos sobre o amor.
E eu contava e recontava mentalmente aqueles fios brancos, encontrados ao acaso, tão bem instalados acima da nuca. Achava aquela minha indiferença petulante tão madura, mas ela repetia: adolescente.


Enquanto ela falava, eu recontava meus anos.
Naquele instante, lembrei-me dele. Pareceu obsceno demais para minha ingenuidade amorosa. Pareceu um velho baú enterrado no fundo do mar, bem ao lado de onde eu estava, soltando pequeninas bolhas de ar entre os cardumes enquanto esperava o barco lá de cima se afastar. O baú de tesouros atiçava a curiosidade da garota, mas a mulher de cabelos brancos já não tinha mais forças para abri-lo. Ele sempre ao meu lado, discreto, quieto. Amigo.


Talvez eu tenha nascido amorosamente velha, já cansada dos mergulhos. Fui logo para o fundo e lá me conformei.
— Uma velha com comportamento adolescente?


E por conta desse descompasso temporal que provocava um vácuo justamente no presente, pensei em subir devagarzinho à superfície, soltando o ar e as desilusões devagarzinho, a fim de evitar uma embolia no corpo e na alma. Eu sabia que o baú também se moveria, em seu ritmo, no momento em que tinha de ser. E partilharia seus tesouros.


Porque ser madura significa igualmente aprender a navegar: também posso me mover de mim, sem me perder.


adieu, les enfants!

Garota moça mulher feminina fêmea, sim.
Mas, por opção, desilusão ou decepção, assexuada.
O fato é: o gênero oposto já não me interessa em nada.

Foi assim:
Um dia, bom dia, acordei e senti: não há mais espaço para um homem aqui.
Na cama no caminho no carinho no corpinho na chama na vida. Em mim.
Era assim um desgostar tranquilo, um sem-gostar. Um deixa-estar-para-lá.

Bem longe. Fiquemos todos bem longe.

Não tinha nada de rebeldia revolução mudança lesbianismo ou santificação. Não.
Era, simplesmente, um desgostar e um desligar normais. Hoje-constatei-sem-surpresa-que-de-homens-não-gosto-mais. E ponto. Sem reticências nem anuências.

Nada ia mesmo acontecer – agora é que não acontece mesmo.
E, com uma a menos para farejar os parcos espécimes disponíveis, a mulherada até que ficou contente. Desvarios compreensíveis...


p.s.: e eu tô falando sério.