((Ou: "Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam", frase de Lóri.))
As horas já não doem mais, porque,
ora, ora, ele mesmo disse:
cada um vive os dias
os dias as semanas os meses os anos os meses as semanas os dias
as horas
como bem quer.
E então não há dor nem rancor nem favor:
simplesmente virou pretérito quase recente do meu tempo presente.
E agradeço, gentil,
as preliminares, a acolhida, a breve partilha
tão suaves, suaves e efêmeras,
embora
embora eu realmente vá embora -- e talvez,
ele ainda confundido com as conjugações dos espaços,
já há distância física, já há distância mesmo,
não compreenda o que signifique "eu realmente vou embora".
Aliás, já fui --
pois se agora ele está no presente,
eu estou duas horas à frente de seu tempo,
e meu presente já não comporta seu, o dele, prenúncio de futuro.
Tornei-o pretérito já quase estabelecido do meu tempo ficando para trás.
Comprido assim, cumprido.
Quase sinto uma pena que
afasto do mesmo modo com que jogo
para trás as mechas de cabelo no rosto
que trazemos os dois,
cada qual com suas opções e porquês.
Ele na solidão de seu poço cercado de muros,
muralhas, telas e teias, grades, lanças, espinhos sem flor.
Espinhos sem flor!
(Vou até ver os novos botões de minhas violetas)
Às vezes, ele assiste ao jogo perigoso,
perigosíssimo embate tinhoso entre carência e culpa
e está sempre mudando de torcida. Alimenta-se
disso, daquilo, vício.
Troca uma dependência por outra,
Agora esta é muito mais cruel posto que interna
e invisível e disfarçada sob a capa de "meu dever".
Divide-se em dois,
O que sobrevive na linguagem escrita
E o que vive na vida falada e cotidianamente movimentada.
A-go-ta-da.
Embora, embora também esse da linguagem escrita
-- esse de leveza e determinação e poesia e emoção --
Parece que também está indo embora.
Não suporta as muralhas.
Machucou-se com os próprios espinhos.
No fundo, as muralhas são seu vício.
E por isso eu não dôo, embora quisesse ter me doado um
pouquinho mais, mas ele não quis nada de mim,
tampouco vai me perdoar -- apesar de me perder --
se souber que agora, no meu tempo presente e em seu tempo futuro,
sinto até comiseração.
Mas não peço perdão nem perdôo
Porque não nos ferimos um ao outro
-- nos ferimos nós mesmos a nós com nossas
lanças impregnadas de nossas próprias expectativas notáveis.
A mim, asas
A navegação, as ilhas desconhecidas,
às ilhas desconhecidas,
A ele, que escolheu por si,
-- couraças e espadas, por favor --
um poço escuro e grudento cercado de muros por todos os lados.
Engana-se orgulhando-se de ter uma ilha só dele,
defendida, se preciso for, com desprezo e caninos.
No fim das contas,
Sempre no solitário e vital aprendizado do não-pedir,
Construo meu momento
E já não me perco mais no meio de fumaças alheias,
Pois o Amor maiúsculo me faz companhia
Enquanto vou ganhando a lonjura da vida
Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
domingo, 30 de dezembro de 2007
Fumaças (da fase pré-experiência do Amor maiúsculo)
((Ou: "Ela não é Lóri. Nem Meryem."))
Os minutos não pareciam doer
Quando ele entrou naquele táxi rumo ao aeroporto
Para um dia, talvez nunca, quem sabe,
Esboçar um reencontro.
Havia intenções, nenhuma promessa, muitos desejos.
Foi a primeira vez. Táxi amarelo para o rapaz de cabelos amarelos.
Nuvens em caracóis sopravam a moça de cabelos encaracolados.
Era um hotel. A cidade não era dele nem dela.
Fazia frio, ela tinha luvas; ele, um cachecol.
Céu azul cintilante sob o rapaz de olhos azuis.
Beijos sabor mel dados pela moça de olhos cor de mel.
Ambos retornavam aos respectivos países.
Meses, alguns anos até, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
As horas não pareciam doer
Quando ela saiu bem cedo, antes de todos acordarem,
Sem lhe dizer adeus, até, quem sabe, nos veremos.
A noite havia sido de fagulhas e estrelas
Estrelas sob o mar que não era mar, seria rio
Y hablava espanhol.
Mas os dois falavam a mesma língua –
A cidade não era dele nem dela, nem o país.
No país deles, não compartilhavam a mesma cidade.
A sós, ruidosos, marotos e inconseqüentes.
Nenhuma promessa. Tesão, corrosão, explosão.
Dias, alguns meses, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A manhã doía um pouquinho
Quando ele abriu a porta do carro
E achou bom que ela já estivesse com saudade,
Que tivesse vontade de esticar o tempo
Pelo menos mais um tantinho.
Ele seguiria para um banho e, depois, o trabalho.
Ela, em menos de doze horas, para outro continente
Numa viagem que duraria bem mais que doze horas.
O rapaz de olhos molhados e cabelos lisos
Falava adeus para a moça de lábios molhados e cabelos revoltos.
Nenhuma promessa, apenas bem-quereres.
Quem sabe, um dia, talvez nunca.
De vez em quando, suspiro daqui ou de lá.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
O dia doeu quase inteiro
Porque não houve adeus. Houve silêncio.
Na praia, ele olhava para a esquerda.
Ela, para o oceano. Entre eles, a inevitável despedida.
Ele preferiu ser concha. Ela, polvo.
Não se acharam mais –
Tinha sido tão lindo, tão lindo.
Começara com um sorriso dela pra ele.
Dele pra ela. Uma folhinha seca.
Caderno de rascunhos, desenhos, outro sorriso,
O toque, a descoberta, doçura, tudo tão doce.
Indigestão, afastamento. Sem adeus.
Ela partia, ele ia para não-sei-onde.
Nenhuma promessa.
Nenhuma linha.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A existência desdobrou-se em dor
Quando aquela porta se fechou, ele de pijama, com sono.
Ela, com sonhos, diante do táxi.
Ele, esfinge, homem de preto, blasé,
Assediadíssimo, sem tempo, Narciso.
Ela, esfinge, inibida,
Ninfa devotada, sem tempo, colorida.
Ele quase disse o que desejava e quase usou o “nós”.
Ela decididamente não disse o que
Queria com ele. E queria tanto, meu Deus.
Perdeu-se nos nós de seus – dos dois – medos.
Nenhum deles entendeu nada.
Nenhuma promessa, contudo. Tentativas somente de um dos lados.
Do outro, o abismo.
A cidade, que outrora havia sido pequena para ambos,
Alargou-se imensamente. Tudo ficou distante.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A dor revestiu-se de chuva e choro –
Ambos leves, suaves e imperceptíveis –
Quando ele deu o beijo derradeiro,
Quase à meia-noite, na esquina escura
Daquela rua fria e praticamente deserta.
Ele romantizava a separação para ter direito,
Semanas depois, a um reencontro.
Ela colocava o ponto final ali mesmo.
Ele pegou o metrô, depois um ônibus,
Até hoje não se sabe se um avião, um barco, um rojão.
Ela voltou para casa, estendeu-se na cama vazia,
Respirou aliviada, suspirou carente.
Nunca falaram a mesma língua,
Tampouco compartilharam intenções.
Nenhuma promessa – mas ele sonhava com uma.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
Dói ainda
Diante do mar de incertezas que separa
Continentes, nações, corações, planos,
Projetos, buscas, cidades e apartamentos.
Ele tem uma varanda e uma janela.
Ela, só janelas. Mas tem várias delas.
Ele tem meia dúzia de roupas, uns poucos livros.
Ela, um monte. Idem para os sentimentos.
Ele está no prólogo, ela no segundo capítulo.
Ele não sabe se lerá o livro, talvez não.
Ela está louca para chegar à metade, seguir até o final,
Criar o volume dois, o três.
Tudo ainda mantém o sabor do iogurte, a quentura da pele,
O som dos suspiros, o cheiro de sabonete,
A cor azul dos lençóis, dos olhos dele, da toalha dela.
Castanhos os dois, ele prateado, ela dourada.
Não pense você que se trata de história inventada,
De encontros propositalmente desfeitos
Para resultar literatura.
Ela e eles existem.
Porém, por algum motivo,
Ela nunca consegue dizer tudo. Ou dizer exatamente. Ou dizer.
As oportunidades se esfumaçam – e ela fala sobre um punhado de
Coisas interessantes, divaga, tece considerações.
Mas não diz tudo. Exatamente. O que sente.
Ela também não faz promessas. Mas se disporia a ouvir uma e, quem sabe,
Aceitá-la.
E assim, no solitário e vital aprendizado do não-pedir,
Ela fica à espera do momento
Em que a dor vai aparecer no meio de tanta fumaça
Para lhe fazer companhia
Enquanto eles vão se perdendo na lonjura da vida.
Os minutos não pareciam doer
Quando ele entrou naquele táxi rumo ao aeroporto
Para um dia, talvez nunca, quem sabe,
Esboçar um reencontro.
Havia intenções, nenhuma promessa, muitos desejos.
Foi a primeira vez. Táxi amarelo para o rapaz de cabelos amarelos.
Nuvens em caracóis sopravam a moça de cabelos encaracolados.
Era um hotel. A cidade não era dele nem dela.
Fazia frio, ela tinha luvas; ele, um cachecol.
Céu azul cintilante sob o rapaz de olhos azuis.
Beijos sabor mel dados pela moça de olhos cor de mel.
Ambos retornavam aos respectivos países.
Meses, alguns anos até, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
As horas não pareciam doer
Quando ela saiu bem cedo, antes de todos acordarem,
Sem lhe dizer adeus, até, quem sabe, nos veremos.
A noite havia sido de fagulhas e estrelas
Estrelas sob o mar que não era mar, seria rio
Y hablava espanhol.
Mas os dois falavam a mesma língua –
A cidade não era dele nem dela, nem o país.
No país deles, não compartilhavam a mesma cidade.
A sós, ruidosos, marotos e inconseqüentes.
Nenhuma promessa. Tesão, corrosão, explosão.
Dias, alguns meses, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A manhã doía um pouquinho
Quando ele abriu a porta do carro
E achou bom que ela já estivesse com saudade,
Que tivesse vontade de esticar o tempo
Pelo menos mais um tantinho.
Ele seguiria para um banho e, depois, o trabalho.
Ela, em menos de doze horas, para outro continente
Numa viagem que duraria bem mais que doze horas.
O rapaz de olhos molhados e cabelos lisos
Falava adeus para a moça de lábios molhados e cabelos revoltos.
Nenhuma promessa, apenas bem-quereres.
Quem sabe, um dia, talvez nunca.
De vez em quando, suspiro daqui ou de lá.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
O dia doeu quase inteiro
Porque não houve adeus. Houve silêncio.
Na praia, ele olhava para a esquerda.
Ela, para o oceano. Entre eles, a inevitável despedida.
Ele preferiu ser concha. Ela, polvo.
Não se acharam mais –
Tinha sido tão lindo, tão lindo.
Começara com um sorriso dela pra ele.
Dele pra ela. Uma folhinha seca.
Caderno de rascunhos, desenhos, outro sorriso,
O toque, a descoberta, doçura, tudo tão doce.
Indigestão, afastamento. Sem adeus.
Ela partia, ele ia para não-sei-onde.
Nenhuma promessa.
Nenhuma linha.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A existência desdobrou-se em dor
Quando aquela porta se fechou, ele de pijama, com sono.
Ela, com sonhos, diante do táxi.
Ele, esfinge, homem de preto, blasé,
Assediadíssimo, sem tempo, Narciso.
Ela, esfinge, inibida,
Ninfa devotada, sem tempo, colorida.
Ele quase disse o que desejava e quase usou o “nós”.
Ela decididamente não disse o que
Queria com ele. E queria tanto, meu Deus.
Perdeu-se nos nós de seus – dos dois – medos.
Nenhum deles entendeu nada.
Nenhuma promessa, contudo. Tentativas somente de um dos lados.
Do outro, o abismo.
A cidade, que outrora havia sido pequena para ambos,
Alargou-se imensamente. Tudo ficou distante.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
A dor revestiu-se de chuva e choro –
Ambos leves, suaves e imperceptíveis –
Quando ele deu o beijo derradeiro,
Quase à meia-noite, na esquina escura
Daquela rua fria e praticamente deserta.
Ele romantizava a separação para ter direito,
Semanas depois, a um reencontro.
Ela colocava o ponto final ali mesmo.
Ele pegou o metrô, depois um ônibus,
Até hoje não se sabe se um avião, um barco, um rojão.
Ela voltou para casa, estendeu-se na cama vazia,
Respirou aliviada, suspirou carente.
Nunca falaram a mesma língua,
Tampouco compartilharam intenções.
Nenhuma promessa – mas ele sonhava com uma.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.
Dói ainda
Diante do mar de incertezas que separa
Continentes, nações, corações, planos,
Projetos, buscas, cidades e apartamentos.
Ele tem uma varanda e uma janela.
Ela, só janelas. Mas tem várias delas.
Ele tem meia dúzia de roupas, uns poucos livros.
Ela, um monte. Idem para os sentimentos.
Ele está no prólogo, ela no segundo capítulo.
Ele não sabe se lerá o livro, talvez não.
Ela está louca para chegar à metade, seguir até o final,
Criar o volume dois, o três.
Tudo ainda mantém o sabor do iogurte, a quentura da pele,
O som dos suspiros, o cheiro de sabonete,
A cor azul dos lençóis, dos olhos dele, da toalha dela.
Castanhos os dois, ele prateado, ela dourada.
Não pense você que se trata de história inventada,
De encontros propositalmente desfeitos
Para resultar literatura.
Ela e eles existem.
Porém, por algum motivo,
Ela nunca consegue dizer tudo. Ou dizer exatamente. Ou dizer.
As oportunidades se esfumaçam – e ela fala sobre um punhado de
Coisas interessantes, divaga, tece considerações.
Mas não diz tudo. Exatamente. O que sente.
Ela também não faz promessas. Mas se disporia a ouvir uma e, quem sabe,
Aceitá-la.
E assim, no solitário e vital aprendizado do não-pedir,
Ela fica à espera do momento
Em que a dor vai aparecer no meio de tanta fumaça
Para lhe fazer companhia
Enquanto eles vão se perdendo na lonjura da vida.
sábado, 29 de dezembro de 2007
Self-shake
Tudo dentro de mim saiu do lugar
Tudo se embaralhou
Só os intestinos ficaram onde sempre estiveram
– ao menos, me resta uma válvula de escape
O engraçado é que o mundo, em si,
Não chacoalhou
Prédios, pessoas, padrões e estatutos permanecem
Onde sempre estiveram,
Como os intestinos
Fui eu que centrifuguei e centripetei
Chicabum
Trinta anos se passaram na minha frente
– ou seja, todo o tempo da minha vida –
mas não só com minhas desventuras sentimentais
profissionais sexuais intelectuais e artísticas, ah, estas;
também com toda a história humana
vivida ouvida saboreada mastigada esmigalhada
Do atropelamento daquela senhora na Avenida Paulista
Numa morna manhã de maio
Carregando incidentalmente tantas vidas interditas e interditadas
Aos muros e discursos e bombas que caem
Sobre todas, todas, todas as nossas cabeças (abstraia, temos mais de uma)
De modo intermitente
Regurgitei a ditadura (os intestinos protestam),
Mas vi
A oligarquia velhusca subir ao poder
A intelectualidade brasilis chegar ao poder
O proletariado católico-trabalhista estar no poder
Vi muita coisa e me cansei
Vomitei (os intestinos que não agüentam mais)
Dane-se o poder
Vi filmes, muitos filmes, sala tela luminosa e escura
Como voei, viajei!
Sacrilégio transcendência ou o quê: realidade
Vi arma na mão do garoto nervoso no ônibus apontando para
Todas, todas, todas as nossas cabeças (éramos oito, mas dava na mesma)
Eu já nem tenho mais cabeça, caramba!
Tenho um coração e um útero dando ordens
Para um fígado surpreso e uma coluna assoberbada
Ah, céu nublado me faça um favor: pare de pingar
Em vão, ninguém dá mais bola
Com tudo fora de lugar
Me senti tão presente na vida presente no tempo presente
Estou taciturna, mas nutro grandes esperanças
E que venha a descarga
Agora que os intestinos funcionaram
(alívio)
Tudo se embaralhou
Só os intestinos ficaram onde sempre estiveram
– ao menos, me resta uma válvula de escape
O engraçado é que o mundo, em si,
Não chacoalhou
Prédios, pessoas, padrões e estatutos permanecem
Onde sempre estiveram,
Como os intestinos
Fui eu que centrifuguei e centripetei
Chicabum
Trinta anos se passaram na minha frente
– ou seja, todo o tempo da minha vida –
mas não só com minhas desventuras sentimentais
profissionais sexuais intelectuais e artísticas, ah, estas;
também com toda a história humana
vivida ouvida saboreada mastigada esmigalhada
Do atropelamento daquela senhora na Avenida Paulista
Numa morna manhã de maio
Carregando incidentalmente tantas vidas interditas e interditadas
Aos muros e discursos e bombas que caem
Sobre todas, todas, todas as nossas cabeças (abstraia, temos mais de uma)
De modo intermitente
Regurgitei a ditadura (os intestinos protestam),
Mas vi
A oligarquia velhusca subir ao poder
A intelectualidade brasilis chegar ao poder
O proletariado católico-trabalhista estar no poder
Vi muita coisa e me cansei
Vomitei (os intestinos que não agüentam mais)
Dane-se o poder
Vi filmes, muitos filmes, sala tela luminosa e escura
Como voei, viajei!
Sacrilégio transcendência ou o quê: realidade
Vi arma na mão do garoto nervoso no ônibus apontando para
Todas, todas, todas as nossas cabeças (éramos oito, mas dava na mesma)
Eu já nem tenho mais cabeça, caramba!
Tenho um coração e um útero dando ordens
Para um fígado surpreso e uma coluna assoberbada
Ah, céu nublado me faça um favor: pare de pingar
Em vão, ninguém dá mais bola
Com tudo fora de lugar
Me senti tão presente na vida presente no tempo presente
Estou taciturna, mas nutro grandes esperanças
E que venha a descarga
Agora que os intestinos funcionaram
(alívio)
Calor. Daqueles. Um dia.
Daqueles dias quentes em que os corpos não vencem naturalmente a pressão do ar. Daqueles dias, portanto. Quentes. Corpos inertes e imóveis, mas corpos. E corpos ardem no calor. Há ainda a pressão. Dias de uma leveza infinita e uma pressão intensa, imensa. Dias de corpos ardentes sob pressão. Dias quentes de intensidade. Dias quase imóveis. Dias, daqueles.
Nesse dia, um senhor de mais de 90 anos morreu. Sentiu falta de ar, pediu a pastilha de controle da pressão ao neto, foi repousar. Lá pelas cinco da tarde, chamaram-no para um café com biscoito de povilho. Ele estava inerte, mas ainda quente. Quase nenhuma ruga na colcha sobre a cama, que ele não tirou antes de deitar. No mesmo dia, uma jovem de vinte e tantos e um homem de quase quarenta se amaram pela primeira vez. "Se amaram" é eufemismo. Olhos castanhos-esverdeados e cabelos grisalhos misturando-se a suor e sonho. Depois do sexo, inertes os dois. O ardor foi vencido pelo calor. Fiquemos assim, ele pediu, suado e pesado, estendido sobre o lençol amarrotado, mãos afagando os cabelos castanhos. Também naquele dia uma mãe caiu de febre na cama. Literalmente. Tonta e ardente, tentava tirar a caixinha de remédios do topo do armário (escondida para o filho caçula não mexer e a filha mais velha não se automedicar). Tropeçou no sapato de salto esquecido por ali. Caiu em diagonal, que sorte, sobre o colchão -- e do lado do marido. Lá ficou, inerte, febril e delirante, ardendo de tontura e de um inusitado desejo que surgiu ao sentir o cheiro do marido na roupa de cama. Igualmente naquele dia, uma senhora gorda decidiu tirar uma soneca à tarde e, fraca diante do calor e da pressão do ar, sucumbiu a sonos profundos. Ela teria um compromisso às 15h, mas não colocou o alarme. A campainha tocou, era o porteiro com um Sedex na mão, porém ela nem ouviu. A máquina de lavar terminou seu trabalho, a cortina da sala derrubou o vaso de violeta sobre a mesinha lateral e folhas de papel voaram pelo quarto. No entanto, inerte e entregue à ardência de seu sono, ela se manteve isolada do mundo dos vivos. Foi o dia também em que o time de futebol amador em que o garoto jogava perdeu uma partida importante, e ele entrou em casa bufando, lançou longe os sapatos, nem trocou de roupa ou tomou banho, suado, trancou a porta do quarto, não deu ouvidos à mãe, ligou o som no último volume e se estatelou na cama, ainda quente de todos os movimentos, ainda quente de raiva, ardendo. Manteve-se imóvel, quase sem respirar, repassando mais de 90 minutos de dribles, passes e chutes por incontáveis instantes, quem sabe até horas. Naquele dia então, a moça grávida sentou-se no sofá porque não suportava ficar em pé nem mais um minuto e começou a sentir as contrações fortíssimas. Deitada, não tinha forças nem vontade para buscar o celular com as mãos e chamar a mãe, o marido, a vizinha. Ardia de dor, pesada não se mexia, o ar denso entrava em seus pulmões a golfadas. Talvez tenha dormido, talvez tenha desmaiado, não se lembra bem, mas abriu os olhos e um bebê estava pendurado nas mãos de um médico suado, ofegante. As enfermeiras também suadas e ofegantes. Ao lado, numa cadeira, parecendo um cirurgião, com uniforme verde-claro, estava o marido. Suado, dormindo, imóvel embora roncasse, completamente entregue a um recém-delírio paterno.
Num daqueles dias em que o ar dá as cartas no jogo do ir-e-vir e torna-se fardo pesado para a excessiva leveza das gentes, das gentes que são ou estão leves, os corpos ardem, ardem de todos os jeitos e com todas as sensações, presos a um tempo e a um espaço que jamais lhes pertencerá. Daqueles era dia. Dia de muito calor. Muito.
Nesse dia, um senhor de mais de 90 anos morreu. Sentiu falta de ar, pediu a pastilha de controle da pressão ao neto, foi repousar. Lá pelas cinco da tarde, chamaram-no para um café com biscoito de povilho. Ele estava inerte, mas ainda quente. Quase nenhuma ruga na colcha sobre a cama, que ele não tirou antes de deitar. No mesmo dia, uma jovem de vinte e tantos e um homem de quase quarenta se amaram pela primeira vez. "Se amaram" é eufemismo. Olhos castanhos-esverdeados e cabelos grisalhos misturando-se a suor e sonho. Depois do sexo, inertes os dois. O ardor foi vencido pelo calor. Fiquemos assim, ele pediu, suado e pesado, estendido sobre o lençol amarrotado, mãos afagando os cabelos castanhos. Também naquele dia uma mãe caiu de febre na cama. Literalmente. Tonta e ardente, tentava tirar a caixinha de remédios do topo do armário (escondida para o filho caçula não mexer e a filha mais velha não se automedicar). Tropeçou no sapato de salto esquecido por ali. Caiu em diagonal, que sorte, sobre o colchão -- e do lado do marido. Lá ficou, inerte, febril e delirante, ardendo de tontura e de um inusitado desejo que surgiu ao sentir o cheiro do marido na roupa de cama. Igualmente naquele dia, uma senhora gorda decidiu tirar uma soneca à tarde e, fraca diante do calor e da pressão do ar, sucumbiu a sonos profundos. Ela teria um compromisso às 15h, mas não colocou o alarme. A campainha tocou, era o porteiro com um Sedex na mão, porém ela nem ouviu. A máquina de lavar terminou seu trabalho, a cortina da sala derrubou o vaso de violeta sobre a mesinha lateral e folhas de papel voaram pelo quarto. No entanto, inerte e entregue à ardência de seu sono, ela se manteve isolada do mundo dos vivos. Foi o dia também em que o time de futebol amador em que o garoto jogava perdeu uma partida importante, e ele entrou em casa bufando, lançou longe os sapatos, nem trocou de roupa ou tomou banho, suado, trancou a porta do quarto, não deu ouvidos à mãe, ligou o som no último volume e se estatelou na cama, ainda quente de todos os movimentos, ainda quente de raiva, ardendo. Manteve-se imóvel, quase sem respirar, repassando mais de 90 minutos de dribles, passes e chutes por incontáveis instantes, quem sabe até horas. Naquele dia então, a moça grávida sentou-se no sofá porque não suportava ficar em pé nem mais um minuto e começou a sentir as contrações fortíssimas. Deitada, não tinha forças nem vontade para buscar o celular com as mãos e chamar a mãe, o marido, a vizinha. Ardia de dor, pesada não se mexia, o ar denso entrava em seus pulmões a golfadas. Talvez tenha dormido, talvez tenha desmaiado, não se lembra bem, mas abriu os olhos e um bebê estava pendurado nas mãos de um médico suado, ofegante. As enfermeiras também suadas e ofegantes. Ao lado, numa cadeira, parecendo um cirurgião, com uniforme verde-claro, estava o marido. Suado, dormindo, imóvel embora roncasse, completamente entregue a um recém-delírio paterno.
Num daqueles dias em que o ar dá as cartas no jogo do ir-e-vir e torna-se fardo pesado para a excessiva leveza das gentes, das gentes que são ou estão leves, os corpos ardem, ardem de todos os jeitos e com todas as sensações, presos a um tempo e a um espaço que jamais lhes pertencerá. Daqueles era dia. Dia de muito calor. Muito.
mea-culpa
eu também não espero muito antes de pegar meu violino e (tentar) ir embora.
o mar apaga todas as pegadas da praia Chesil ou não?
o mar apaga todas as pegadas da praia Chesil ou não?
sexta-feira, 28 de dezembro de 2007
Lágrimas para a moça de violino
1.
Terminei a leitura de “Na Praia”, de Ian McEwan, e de “Jerusalém”, de Gonçalo M. Tavares. Gostei de ambos. McEwan escreve um livro classudo, apoiado em digressões e no delineamento dos personagens, sem no entanto dissecar suas emoções explicitamente (mas acho que, talvez por isso, ele consiga criar uma linha tênue entre o micro e o macro, o particular e o universal). Seu estilo segue refinado e polido. E eu chorei no terço final. Fiquei com um baita nó na garganta e daí para as lágrimas foi bem fácil. Florence e Edward – seja outra a década, seja outro o século, outra a relação com o sexo e outras as questões íntimas que criam grumos nas relações amorosas, eles estão vivos e respiram. Posso ser Florence (com as ressalvas acima).
Gonçalo, por sua vez, enche sua história de frescor estilístico e temático e elabora uma bela, pungente e espinhosa metáfora de nossos tempos. Não sei a intenção do escritor ao chamar o livro de Jerusalém, mas a associação ficou deveras clara para mim, eu que estive lá e passei do encantamento à decepção, engolindo abruptamente cada uma das contradições dessa cidade única. Hipócrita e santa, desejada e repugnante, bela e dolorida. Jerusalém-cidade como emblema do mundo, como metáfora do mundo. Jerusalém-livro como metáfora de Jerusalém-cidade, como síntese do mundo.
2.
Essa vem de Ian McEwan, em “Na Praia” (On Chesil Beach), parece que pensando em mim. Quem fala é Edward. Podia ser o moço que hoje vive em Túnis. Ou aquele de Istambul. Ou o de Belém. Ou, então, o da Cidade do México. Ou o de Viña del Mar. Ou o de São Paulo, o que mora(va) no Brás. Não importa, qualquer um.
“Quando pensava nela, parecia-lhe surpreendente que tivesse deixado aquela garota com seu violino ir embora. (...) Tudo o que ela precisava era da certeza do amor dele, e de sua garantia de que não havia pressa, pois tinham a vida pela frente. Amor e paciência –se pelo menos ele tivesse conhecido ambos ao mesmo tempo – certamente os teriam ajudado a vencer as dificuldades.”
Eu me emociono muito com esse trecho. Demais.
Não me lembro de ter ouvido meu nome quando me virei para ir embora, afastando-me numa tentativa de me aproximar.
“Na praia de Chesil, ele poderia ter gritado o nome de Florence, poderia ter ido atrás dela. Ele não sabia, ou não teria querido saber, que, enquanto ela fugia, certa na sua dor de que o estava perdendo, nunca o amara tanto, o mais desesperadamente, e que o som da voz dele teria sido seu resgate, e que ela teria voltado atrás.”
Talvez seja o sinal.
Quando eu ouvir meu nome, na praia de Chesil.
Terminei a leitura de “Na Praia”, de Ian McEwan, e de “Jerusalém”, de Gonçalo M. Tavares. Gostei de ambos. McEwan escreve um livro classudo, apoiado em digressões e no delineamento dos personagens, sem no entanto dissecar suas emoções explicitamente (mas acho que, talvez por isso, ele consiga criar uma linha tênue entre o micro e o macro, o particular e o universal). Seu estilo segue refinado e polido. E eu chorei no terço final. Fiquei com um baita nó na garganta e daí para as lágrimas foi bem fácil. Florence e Edward – seja outra a década, seja outro o século, outra a relação com o sexo e outras as questões íntimas que criam grumos nas relações amorosas, eles estão vivos e respiram. Posso ser Florence (com as ressalvas acima).
Gonçalo, por sua vez, enche sua história de frescor estilístico e temático e elabora uma bela, pungente e espinhosa metáfora de nossos tempos. Não sei a intenção do escritor ao chamar o livro de Jerusalém, mas a associação ficou deveras clara para mim, eu que estive lá e passei do encantamento à decepção, engolindo abruptamente cada uma das contradições dessa cidade única. Hipócrita e santa, desejada e repugnante, bela e dolorida. Jerusalém-cidade como emblema do mundo, como metáfora do mundo. Jerusalém-livro como metáfora de Jerusalém-cidade, como síntese do mundo.
2.
Essa vem de Ian McEwan, em “Na Praia” (On Chesil Beach), parece que pensando em mim. Quem fala é Edward. Podia ser o moço que hoje vive em Túnis. Ou aquele de Istambul. Ou o de Belém. Ou, então, o da Cidade do México. Ou o de Viña del Mar. Ou o de São Paulo, o que mora(va) no Brás. Não importa, qualquer um.
“Quando pensava nela, parecia-lhe surpreendente que tivesse deixado aquela garota com seu violino ir embora. (...) Tudo o que ela precisava era da certeza do amor dele, e de sua garantia de que não havia pressa, pois tinham a vida pela frente. Amor e paciência –se pelo menos ele tivesse conhecido ambos ao mesmo tempo – certamente os teriam ajudado a vencer as dificuldades.”
Eu me emociono muito com esse trecho. Demais.
Não me lembro de ter ouvido meu nome quando me virei para ir embora, afastando-me numa tentativa de me aproximar.
“Na praia de Chesil, ele poderia ter gritado o nome de Florence, poderia ter ido atrás dela. Ele não sabia, ou não teria querido saber, que, enquanto ela fugia, certa na sua dor de que o estava perdendo, nunca o amara tanto, o mais desesperadamente, e que o som da voz dele teria sido seu resgate, e que ela teria voltado atrás.”
Talvez seja o sinal.
Quando eu ouvir meu nome, na praia de Chesil.
Uma lágrima, duas ou muitíssimas...
... para Benazir Bhutto, mulher, muçulmana, dona de uma história trágica de idealismo. Se seu pai ou seu marido eram ou não inocentes, não sei, mas não vem ao caso. Tampouco falo de seu partido político. Aqui não vou dar margem a intrigas da oposição. Benazir lutava porque acreditava e acreditava na causa pela qual lutava.
Reafirmo aqui minha indignação contra os extremismos e radicalismos de quaisquer ordens – religiosas, políticas, sociais, ecológicas, econômicas.
Reafirmo aqui minha indignação contra atentados terroristas como solução, penas de morte como solução, torturas como solução. Isso é balela.
Reafirmo aqui minha fé fervorosa no amor e no perdão, na honestidade e na partilha, na paz e na firmeza de espírito, na coragem e na generosidade.
Mais lágrimas por todos os outros paquistaneses que morreram, vítimas inocentes.
Lágrimas por todos os que morrem diariamente no mundo por conta de ódios alheios, de egoísmos de terceiros e de maldades praticadas a torto e a direito. Injustificáveis.
Como vencer os cains? Como evitar que os cains ganhem o mundo, as sociedades, os governos? Como?
Reafirmo aqui minha indignação contra os extremismos e radicalismos de quaisquer ordens – religiosas, políticas, sociais, ecológicas, econômicas.
Reafirmo aqui minha indignação contra atentados terroristas como solução, penas de morte como solução, torturas como solução. Isso é balela.
Reafirmo aqui minha fé fervorosa no amor e no perdão, na honestidade e na partilha, na paz e na firmeza de espírito, na coragem e na generosidade.
Mais lágrimas por todos os outros paquistaneses que morreram, vítimas inocentes.
Lágrimas por todos os que morrem diariamente no mundo por conta de ódios alheios, de egoísmos de terceiros e de maldades praticadas a torto e a direito. Injustificáveis.
Como vencer os cains? Como evitar que os cains ganhem o mundo, as sociedades, os governos? Como?
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
musas? somos todas!
Depois de um giro pela cidade, tendo encontrado amiga Barbarella-sempre-bela e palhaça total, partilho pensamento bonito de amiga bonita, mais palhaça do que ela mesma se imagina, e que também se despede de seu Ulisses de agora (embora, no meu caso, tenha havido soprinho de vida no Mar Morto!):
"E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de mim, não como algo que me repugna - mas pacificamente e de mim saciada, tal como eu dela, e como se devêssemos gratidão mútua, estendendo-nos a mão em despedida! E algo de novo já espera na porta, e igualmente a minha crença, - a indestrutível tola e sábia - de que esse novo será o certo, o certo e derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, idéias, cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida."
Nietzsche
"E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de mim, não como algo que me repugna - mas pacificamente e de mim saciada, tal como eu dela, e como se devêssemos gratidão mútua, estendendo-nos a mão em despedida! E algo de novo já espera na porta, e igualmente a minha crença, - a indestrutível tola e sábia - de que esse novo será o certo, o certo e derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, idéias, cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida."
Nietzsche
excessivamente Lóri
Sina, boa sina, a cada novo Ulisses... um novo universo a ser desbravado, tocado, apalpado, sentido, desfrutado, mar que pede meus pés, mundo que pede meus pés, pele -- um horizonte de pele e poros e pêlos -- que pede minhas mãos.
Lóri-em-gênese-constante. A cada instante. Uma atrás da outra, às vezes duas ou três coexistindo no mesmo espaço-tempo dos mortais, como agora, mas em tempos e espaços diferentes dentro do meu coração. Chamava dispersão, agora sei que faz parte do mundo onírico de Meryem multiplicar Lóri. O Planeta Terra precisa da Lóri que sou.
E agora que o filme do Crialese finalmente está em cartaz, vale a pena lembrar...
Nuovomondo, de Crialese, ou A Gênese de Lóri
, o primeiro post. O que a gente não esquece.
O muso inspirador foi um, com nome, sobrenome, rostinho, leituras, barbicha, sonhos e suor. Mas esse espaço tem muitos donos.
Muitos os musos, com a morenice lato sensu em sentido amplo na aparência e alma disponível.
Ulisses, todos. Com um mundo onírico de Meryem inteiro a navegar.
Pois navegar é preciso. E viver em mim também é preciso.
Lóri-em-gênese-constante. A cada instante. Uma atrás da outra, às vezes duas ou três coexistindo no mesmo espaço-tempo dos mortais, como agora, mas em tempos e espaços diferentes dentro do meu coração. Chamava dispersão, agora sei que faz parte do mundo onírico de Meryem multiplicar Lóri. O Planeta Terra precisa da Lóri que sou.
E agora que o filme do Crialese finalmente está em cartaz, vale a pena lembrar...
Nuovomondo, de Crialese, ou A Gênese de Lóri
, o primeiro post. O que a gente não esquece.
O muso inspirador foi um, com nome, sobrenome, rostinho, leituras, barbicha, sonhos e suor. Mas esse espaço tem muitos donos.
Muitos os musos, com a morenice lato sensu em sentido amplo na aparência e alma disponível.
Ulisses, todos. Com um mundo onírico de Meryem inteiro a navegar.
Pois navegar é preciso. E viver em mim também é preciso.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
Chá requentado, Mar Morto
1.
Putz, como dói. Saudade dói. Desapego dói. Pausa dói.
Estou me sentindo sozinha, mas não quero encontrar ninguém.
Daí escrevo, escrevo, escrevo – e o pulso esquerdo lateja tanto que parece querer independência da minha existência coesa a fim de ser livre para acariciar cabeças masculinas. Ou digitar desejos escusos. Ou desenhar no espelho embaçado depois do choro.
Sou destra, mas meu olho direito se esforça para enxergar além da miopia da saudade, já que todos os óculos de grau estão com a haste direita quebrada e sem lente desse lado. De novo: esquisito isso.
Ligo o rádio para não ter o controle sobre as músicas. Todas me transportam para acolá. Estou presa à vida, mas não a esse espaço. Busco meus companheiros.
Vôo.
2.
Nada nele me chamou a atenção no primeiro momento, embora hoje eu o ache lindo, uma obra de arte da natureza humana. Tão coerente na aparência em relação à paisagem de onde vive. As casas de pedra cor creme, as oliveiras e suas folhas cor verde-queimado, uma paisagem árida por definição mas deliciosamente viciante – morros e pedras e vegetação rasteira em tons que variam entre o marrom e o cinza, o amarelo e o verde, o azul do céu e o branco. Ele e sua pele morena. Não muito alto, mas não mais baixo que eu. Distribuição perfeita de quilos. Um moço atraente, inteligente e maduro.
Começamos a conversar assim, distraidamente, quando perguntei o significado de uma palavra. Estávamos no centro da cidade, íamos a pé ao campo dos refugiados, vimos o muro da separação, o horrível muro da separação, e começamos a falar de segregação. Ele me contou sobre o preconceito que sofreu no Aeroporto Charles de Gaulle, quando um vôo da Air France foi cancelado e os passageiros foram encaixados num outro, marcado para o dia seguinte. Eu nem sei do que falei, mas falava algo, era um diálogo. E aí, durante o resto da tarde, estivemos sempre mais ou menos próximos, trocando idéias e impressões. À noite, depois do jantar, sentamos juntos novamente, porém com outros amigos, para continuar com minhas “aulas de idioma”. Por algum motivo, brindamos com chá e eu treinei a saudação na língua dele. Disse: precisamos olhar nos olhos ao fazer tim-tim. Lindos olhos os dele, negros, grandes, míopes como os meus. Da última vez não olhei nos olhos quando brindei, eu brinquei, e tive um azar... foi por isso, agora sei, foi porque não olhei nos olhos... Risos. Poderia passar dias olhando nos olhos dele.
A conexão entre nós era evidente e começou a ser notada. Ele tratava a todos com elegância e amizade, porém me dedicava olhares e sorrisos mais largos. Comecei a investir nessa conexão também – mas, talvez sem compreender a paisagem e, conseqüentemente, o diferente modus operandi de sua cultura marcada por diferenças importantes, passei do tom em algum momento. Usei magenta demais, me excedi nos vermelhos quando podia ter sido mais suave ou esverdeada. Mas sou rosada, o que posso fazer?
Mar Morto, tarde de domingo ensolarado. Eu flutuava, contente, e o via flutuar também, lá na frente, com outros colegas. Nossos olhares se buscavam – e, mesmo distantes, sempre nos mantínhamos um na mira do outro. Até que, obviamente, nos cruzamos. Quer ajuda para passar a lama? Sim, e você? Também. Então, um ajuda o outro. Feito. Toque, toque, quase massagem, meu indicador travesso marcando todo o caminho da coluna, um arrepio do lado de lá seguido de sorriso, mãos sobre os ombros, mãos delicadamente acariciando a lama nos braços, mãos nas mãos, e as costas, e o rosto, toda a minha ternura no contorno daquele rosto lindo de olhos fechados. Também houve dedo travesso marcando o contorno da minha coluna, arrepio igualmente seguido de sorriso, o tônus dos dedos, um carinho, um cuidado. Ambos lambuzados. Uma mulher pergunta se somos marido e mulher. Trocamos olhares: não ainda! E, depois, a brincadeira de marido e mulher rendendo ainda piadinhas entre nós daqui e dali.
Mas ele tinha uma namorada.
Tem outra religião.
Ele tem uma causa pela qual lutar – e o respeito às tradições lhe dá força para seguir em busca dessa causa.
Uma causa que apóio, mas não é a minha. Porque minha nacionalidade me protege de muitos males, mas ele é totalmente exposto. Porque, às vezes, isso faz diferença. Ele não é europeu, latino-americano, anglo-saxão. Porque nasceu por lá e tem orgulho disso. Mas não pertence – ainda – a uma nação. Porque precisa provar o tempo todo que é do bem, que não porta armas, que não vai explodir nenhum ônibus. Porque a causa precisa dele, aquele povo sofrido precisa dele.
Sou uma brasileira e carrego outras tradições, umas porque quero, outras porque fazem parte de minha essência, nossa essência. Faria concessões, mas há impossibilidades que envolvem governos, fronteiras, livros de história, acordos. Doeu quando ele compreendeu isso antes de mim. Doeu quando compreendi depois dele. Doeu porque estava fascinada.
Ele viu a mulher que sou – e me dei conta disso tempos mais tarde, já longe. Aparentemente gostou dela, porém entendeu que essa mulher estrangeira jamais seria uma opção à história dele e de seu povo, a história que ele carrega na pele e nos lindos olhos negros, que carrega no sotaque de “rrr” em seu inglês impecável e voz quase rouca, a história que flutua com ele no Mar Morto. Não havia duas opções para ele. Eu simplesmente não fazia sentido no contexto em que ele se encontra; se o mundo fosse outro, a política internacional, as lideranças, os interesses econômicos fossem outros, quem sabe. Eu não podia com ele, pelas mesmas razões e também por conta de meu coração ainda disperso.
Enxerguei o homem que ele é e me encantei. De tanto respeito, pus minha fêmea magenta para hibernar. Eu me deixei revelar no todo, e não apenas na minha parte sedutora-sensorial, deixei-me revelar em todas as minhas contradições femininas e sul-americanas, em minha alma nômade e carente, afetuosa e indignada.
Foi uma linda história de amor, foi sim. Embora nada usual, com essa capa de incompletude. Um amor de outro jeito, um outro jeito de amar. História viva em pleno Mar Morto, onde deixamos todas as escamas de nossos corações sob a lama a fim de que fôssemos puros e sinceros. E flutuássemos, sem o peso das cobranças e dos preconceitos.
Putz, como dói. Saudade dói. Desapego dói. Pausa dói.
Estou me sentindo sozinha, mas não quero encontrar ninguém.
Daí escrevo, escrevo, escrevo – e o pulso esquerdo lateja tanto que parece querer independência da minha existência coesa a fim de ser livre para acariciar cabeças masculinas. Ou digitar desejos escusos. Ou desenhar no espelho embaçado depois do choro.
Sou destra, mas meu olho direito se esforça para enxergar além da miopia da saudade, já que todos os óculos de grau estão com a haste direita quebrada e sem lente desse lado. De novo: esquisito isso.
Ligo o rádio para não ter o controle sobre as músicas. Todas me transportam para acolá. Estou presa à vida, mas não a esse espaço. Busco meus companheiros.
Vôo.
2.
Nada nele me chamou a atenção no primeiro momento, embora hoje eu o ache lindo, uma obra de arte da natureza humana. Tão coerente na aparência em relação à paisagem de onde vive. As casas de pedra cor creme, as oliveiras e suas folhas cor verde-queimado, uma paisagem árida por definição mas deliciosamente viciante – morros e pedras e vegetação rasteira em tons que variam entre o marrom e o cinza, o amarelo e o verde, o azul do céu e o branco. Ele e sua pele morena. Não muito alto, mas não mais baixo que eu. Distribuição perfeita de quilos. Um moço atraente, inteligente e maduro.
Começamos a conversar assim, distraidamente, quando perguntei o significado de uma palavra. Estávamos no centro da cidade, íamos a pé ao campo dos refugiados, vimos o muro da separação, o horrível muro da separação, e começamos a falar de segregação. Ele me contou sobre o preconceito que sofreu no Aeroporto Charles de Gaulle, quando um vôo da Air France foi cancelado e os passageiros foram encaixados num outro, marcado para o dia seguinte. Eu nem sei do que falei, mas falava algo, era um diálogo. E aí, durante o resto da tarde, estivemos sempre mais ou menos próximos, trocando idéias e impressões. À noite, depois do jantar, sentamos juntos novamente, porém com outros amigos, para continuar com minhas “aulas de idioma”. Por algum motivo, brindamos com chá e eu treinei a saudação na língua dele. Disse: precisamos olhar nos olhos ao fazer tim-tim. Lindos olhos os dele, negros, grandes, míopes como os meus. Da última vez não olhei nos olhos quando brindei, eu brinquei, e tive um azar... foi por isso, agora sei, foi porque não olhei nos olhos... Risos. Poderia passar dias olhando nos olhos dele.
A conexão entre nós era evidente e começou a ser notada. Ele tratava a todos com elegância e amizade, porém me dedicava olhares e sorrisos mais largos. Comecei a investir nessa conexão também – mas, talvez sem compreender a paisagem e, conseqüentemente, o diferente modus operandi de sua cultura marcada por diferenças importantes, passei do tom em algum momento. Usei magenta demais, me excedi nos vermelhos quando podia ter sido mais suave ou esverdeada. Mas sou rosada, o que posso fazer?
Mar Morto, tarde de domingo ensolarado. Eu flutuava, contente, e o via flutuar também, lá na frente, com outros colegas. Nossos olhares se buscavam – e, mesmo distantes, sempre nos mantínhamos um na mira do outro. Até que, obviamente, nos cruzamos. Quer ajuda para passar a lama? Sim, e você? Também. Então, um ajuda o outro. Feito. Toque, toque, quase massagem, meu indicador travesso marcando todo o caminho da coluna, um arrepio do lado de lá seguido de sorriso, mãos sobre os ombros, mãos delicadamente acariciando a lama nos braços, mãos nas mãos, e as costas, e o rosto, toda a minha ternura no contorno daquele rosto lindo de olhos fechados. Também houve dedo travesso marcando o contorno da minha coluna, arrepio igualmente seguido de sorriso, o tônus dos dedos, um carinho, um cuidado. Ambos lambuzados. Uma mulher pergunta se somos marido e mulher. Trocamos olhares: não ainda! E, depois, a brincadeira de marido e mulher rendendo ainda piadinhas entre nós daqui e dali.
Mas ele tinha uma namorada.
Tem outra religião.
Ele tem uma causa pela qual lutar – e o respeito às tradições lhe dá força para seguir em busca dessa causa.
Uma causa que apóio, mas não é a minha. Porque minha nacionalidade me protege de muitos males, mas ele é totalmente exposto. Porque, às vezes, isso faz diferença. Ele não é europeu, latino-americano, anglo-saxão. Porque nasceu por lá e tem orgulho disso. Mas não pertence – ainda – a uma nação. Porque precisa provar o tempo todo que é do bem, que não porta armas, que não vai explodir nenhum ônibus. Porque a causa precisa dele, aquele povo sofrido precisa dele.
Sou uma brasileira e carrego outras tradições, umas porque quero, outras porque fazem parte de minha essência, nossa essência. Faria concessões, mas há impossibilidades que envolvem governos, fronteiras, livros de história, acordos. Doeu quando ele compreendeu isso antes de mim. Doeu quando compreendi depois dele. Doeu porque estava fascinada.
Ele viu a mulher que sou – e me dei conta disso tempos mais tarde, já longe. Aparentemente gostou dela, porém entendeu que essa mulher estrangeira jamais seria uma opção à história dele e de seu povo, a história que ele carrega na pele e nos lindos olhos negros, que carrega no sotaque de “rrr” em seu inglês impecável e voz quase rouca, a história que flutua com ele no Mar Morto. Não havia duas opções para ele. Eu simplesmente não fazia sentido no contexto em que ele se encontra; se o mundo fosse outro, a política internacional, as lideranças, os interesses econômicos fossem outros, quem sabe. Eu não podia com ele, pelas mesmas razões e também por conta de meu coração ainda disperso.
Enxerguei o homem que ele é e me encantei. De tanto respeito, pus minha fêmea magenta para hibernar. Eu me deixei revelar no todo, e não apenas na minha parte sedutora-sensorial, deixei-me revelar em todas as minhas contradições femininas e sul-americanas, em minha alma nômade e carente, afetuosa e indignada.
Foi uma linda história de amor, foi sim. Embora nada usual, com essa capa de incompletude. Um amor de outro jeito, um outro jeito de amar. História viva em pleno Mar Morto, onde deixamos todas as escamas de nossos corações sob a lama a fim de que fôssemos puros e sinceros. E flutuássemos, sem o peso das cobranças e dos preconceitos.
RESSACA (ou o impacto da pausa sobre o movimento)
Eu tive muitas vidas em muitos mundos diferentes por um tempo que pareceu longuíssimo, mas jamais cansativo ou pesado, pelo contrário. Tão prazeroso experimentar novos caminhos, desconhecidos e selvagens, e também trilhar rumos aparentemente já delineados. Vida invisível misturou-se à vida de fato e às outras vidas que eu carregava em minha gestação da alma naquele momento. Foi um tempo mais fluido e mais comprido que o tempo do cotidiano, habitado por pessoas lindas e diferentes, rasas ou profundas, e daí?, puros oceanos ou rios efêmeros, em idiomas inimagináveis.
Pois a chegada, depois de todas essas aventuras, nem foi tão abrupta.
Cheguei suave e sorridente, tomei banho, driblei o fuso e reencontrei amigos, cantinhos, comidas, colos, carinhos antigos.
Mas hoje, nesse dia de verão irreconhecível, nesse dia de recolhimento necessário para balancetes de todas e quaisquer ordens, nesse dia em que um CD do Legião Urbana gritou para ser ouvido, misturando “Quase sem Querer”, “Tempo Perdido” e “Índios”, qualquer coisa de muito tempo atrás veio à tona, nesse dia me bateu uma ressaca. Me bateu saudade doída, saudade doida, saudade de tudo e de todos e dos caminhos e do espírito daquelas vidas todas naqueles mundos todos em todo aquele tempo.
Me dói o pulso esquerdo, parece que tem princípio de tendinite, alguém me liga muito no celular, eu não atendo, eu espalho as roupas sujas e quase limpas da mochila pelo chão, eu misturo roupas e pó, como se ousasse ousar ainda mais e usar disso para protestar. Já piquei cebola, piquei muita cebola, para disfarçar o choro de saudade e misturar as lágrimas verdadeiras com aquelas criadas para o momento presente.
Eu quero esse dia nublado de balancetes diversos e de todas as ordens, eu o quero com meus pulmões e com a música da minha alma, eu quero com meus pés que se mesclam às roupas e ao pó do chão, quero tudo e todos porque era assim que eu vivia no tempo fluido de todas as vidas possíveis nos mundos de tanto tudo, onde eu estava quase antes. Eu preciso desse dia, eu preciso da experiência do retorno, de compactar todas as vidas e todos os mundos e todas as gentes numa de mim compacta.
O poço é fundo, e a fonte não seca. Não vai secar. Jorra tudo de todas as formas – e eu sigo espalhando as roupas pelo chão, espalha, espalha, espalha. Contudo, não me espantalho.
É que hoje, me perdoem os leitores e os carteiros, os leiteiros e os camareiros, os amigos e os falidos, me bateu a ressaca da volta. Mesmo que essa volta seja uma passagem e mesmo que eu volte para algo que não existia antes – o que é lindo, muito bom, assustadoramente encantador e fascinante. Novo, estupendo de novo.
Parada para reabastecimento, quando o carro ainda está meio em movimento e tem ainda algum combustível, ou pensa que tem.
Vejo algumas fotos, relembro algumas gentes e algumas trilhas, sinto a vida numa torrente mais forte que qualquer força que movimente as máquinas deslizantes sobre o asfalto chuvoso dessa cidade-que-só, onde não sofro, mas dôo. Dôo de dor e de doação, porque não sou só para mim, sou também para todos que são.
Não sei se quero voltar aos mundos em que estava, talvez eu queira continuar desdobrando-me em pessoas diversas em tantas vidas possíveis num tempo que não está sob o jugo de nada. E experimentando a transcendência na mais alta potência – em história e verdade – em realidades, mais que uma.
Talvez hoje eu esteja no aprendizado do parar, sentar, respirar, observar e descansar. Antes de seguir. E parar, sentar, respirar, observar e descansar também traz avanços e descobertas. Centrar-me. Sóbria e equilibrista. Com os três óculos de grau quebrados na armação direita e na lente do mesmo lado. Com os três óculos de sol quebrados também do mesmo jeito. Não pode ser coincidência apenas; deve ser aprendizado. Algo relacionado ao olhar, ao modo de olhar, à luz que quero ou posso enxergar.
Paro.
Sento.
Respiro.
Observo.
Respeito. Respeito a mim mesma nesse momento de pausa, talvez não desejada, mas necessária.
Olho, com ternura, para o dia que também me olha com ternura, do lado de lá da janela. Um pouco cansada depois dessa explosão de saudade. Suspiro fundo e calmamente, adormeço. Toda chegada também é uma partida, todo encontro é também despedida.
Já me sinto mais tranqüila.
E me dou as boas-vindas, aonde quer que eu vá. Ou se fico.
Pois a chegada, depois de todas essas aventuras, nem foi tão abrupta.
Cheguei suave e sorridente, tomei banho, driblei o fuso e reencontrei amigos, cantinhos, comidas, colos, carinhos antigos.
Mas hoje, nesse dia de verão irreconhecível, nesse dia de recolhimento necessário para balancetes de todas e quaisquer ordens, nesse dia em que um CD do Legião Urbana gritou para ser ouvido, misturando “Quase sem Querer”, “Tempo Perdido” e “Índios”, qualquer coisa de muito tempo atrás veio à tona, nesse dia me bateu uma ressaca. Me bateu saudade doída, saudade doida, saudade de tudo e de todos e dos caminhos e do espírito daquelas vidas todas naqueles mundos todos em todo aquele tempo.
Me dói o pulso esquerdo, parece que tem princípio de tendinite, alguém me liga muito no celular, eu não atendo, eu espalho as roupas sujas e quase limpas da mochila pelo chão, eu misturo roupas e pó, como se ousasse ousar ainda mais e usar disso para protestar. Já piquei cebola, piquei muita cebola, para disfarçar o choro de saudade e misturar as lágrimas verdadeiras com aquelas criadas para o momento presente.
Eu quero esse dia nublado de balancetes diversos e de todas as ordens, eu o quero com meus pulmões e com a música da minha alma, eu quero com meus pés que se mesclam às roupas e ao pó do chão, quero tudo e todos porque era assim que eu vivia no tempo fluido de todas as vidas possíveis nos mundos de tanto tudo, onde eu estava quase antes. Eu preciso desse dia, eu preciso da experiência do retorno, de compactar todas as vidas e todos os mundos e todas as gentes numa de mim compacta.
O poço é fundo, e a fonte não seca. Não vai secar. Jorra tudo de todas as formas – e eu sigo espalhando as roupas pelo chão, espalha, espalha, espalha. Contudo, não me espantalho.
É que hoje, me perdoem os leitores e os carteiros, os leiteiros e os camareiros, os amigos e os falidos, me bateu a ressaca da volta. Mesmo que essa volta seja uma passagem e mesmo que eu volte para algo que não existia antes – o que é lindo, muito bom, assustadoramente encantador e fascinante. Novo, estupendo de novo.
Parada para reabastecimento, quando o carro ainda está meio em movimento e tem ainda algum combustível, ou pensa que tem.
Vejo algumas fotos, relembro algumas gentes e algumas trilhas, sinto a vida numa torrente mais forte que qualquer força que movimente as máquinas deslizantes sobre o asfalto chuvoso dessa cidade-que-só, onde não sofro, mas dôo. Dôo de dor e de doação, porque não sou só para mim, sou também para todos que são.
Não sei se quero voltar aos mundos em que estava, talvez eu queira continuar desdobrando-me em pessoas diversas em tantas vidas possíveis num tempo que não está sob o jugo de nada. E experimentando a transcendência na mais alta potência – em história e verdade – em realidades, mais que uma.
Talvez hoje eu esteja no aprendizado do parar, sentar, respirar, observar e descansar. Antes de seguir. E parar, sentar, respirar, observar e descansar também traz avanços e descobertas. Centrar-me. Sóbria e equilibrista. Com os três óculos de grau quebrados na armação direita e na lente do mesmo lado. Com os três óculos de sol quebrados também do mesmo jeito. Não pode ser coincidência apenas; deve ser aprendizado. Algo relacionado ao olhar, ao modo de olhar, à luz que quero ou posso enxergar.
Paro.
Sento.
Respiro.
Observo.
Respeito. Respeito a mim mesma nesse momento de pausa, talvez não desejada, mas necessária.
Olho, com ternura, para o dia que também me olha com ternura, do lado de lá da janela. Um pouco cansada depois dessa explosão de saudade. Suspiro fundo e calmamente, adormeço. Toda chegada também é uma partida, todo encontro é também despedida.
Já me sinto mais tranqüila.
E me dou as boas-vindas, aonde quer que eu vá. Ou se fico.
The Magnificent
Prólogo
É mais que um beijo. Identifico uma entrega. Um enlace dourado, uma costura de retalhos dele e dela, uma fusão de partes, dois inteiros formando um todo luminoso e colorido, uma experiência orgástica e cósmica.
Não sei quando me deparei com a tela de Gustav Klimt pela primeira vez, num livro ou num postal. Mas me lembro quando a vi no museu em Viena, ao vivo. O dia estava nublado e um pouco friorento, como hoje. (Olho meu verão pela janela e não o reconheço. Chove chuva fina nesse dia de céu cinza esbranquiçado sem vontade de sair lá fora, vento úmido e frio contrastando com o calor do apartamento e do ventre quente e sanguinolento, que lateja feminilidade biológica. Não reconheço meu verão! No toca-CD, Concierto de Aranjuez segue firme e embriagante, nas mãos de Alexandre Lagoya e da Monte-Carlo National Opera Orchestra, em três atos – ao contrário da versão de Miles Davis, que vai numa tacada só). Klimt, então, volto a Klimt, e ao dia em que vi O Beijo ao vivo. Frente a frente, encontro quase inesperado, embora anunciado, não tinha expectativas. Apenas entrei na sala e vi. A tela reluzia, linda e envolvente, trazendo-me uma ponta de tristeza por admirá-la só, sem ninguém ao meu lado, sem nenhum homem que me enlaçasse e me beijasse. Entrei na tela e fui beijada. O inesperado da entrega. Eu me entreguei.
Isso aconteceu em 2003, creio. Verão europeu de 2003, mas como o verão brasileiro de 2007 de céu cinza esbranquiçado, chuva fina e algum frio. Sozinha, embora tão emocionalmente acompanhada. Onde estão todos?
Nesse momento, me recordo de apenas um. E ele basta.
J.
Reprodução de O Beijo, tamanho real, na parede rubra, vermelho cor de vinho tinto olhado através da luz. Vermelho do sangue que me percorre e que jorra hoje de mim. Era a segunda vez, pois a primeira foi em outro lugar, em outro quarto, não dele, não nosso, já que era o caminho natural dos sentimentos e dos desejos e estávamos longe das paredes rubras. Se já não tínhamos a novidade da primeira vez, tínhamos a intimidade da segunda. O Beijo, os beijos, o enlace, as entregas, Caio Fernando Abreu sempre definindo tão bem as coisas: esses pedacinhos desconexos de nós mesmos que fazem sentido quando o Outro nos enxerga.
Ele compreendendo sua energia masculina, eu em reconhecimento de minha energia feminina, fronteiras de idade e de nacionalidade totalmente diluídas num mar de puras descobertas. Havia doçura e selvageria, havia respeito e firmeza, havia um deslumbramento de ambos e por motivos diferentes. De relance, quando os olhos se desviavam daqueles olhos escuros de sombrancelhas grossas, eu via o Beijo. Eu dava um beijo, eu recebia um beijo. Reluzíamos os dois.
Faz pouco tempo e já tenho saudade.
Uma história que começou Jules e Jim, por uma necessidade mútua e tripla de partilha e troca e entrega e fusão e doação, mas que virou eu e J. apenas.
Ele mais alto e mais delgado, ele delicado, ele incomodado com as vozes de seus julgamentos internos, ele em franca aprendizagem do Amor. Aquele Amor, das maiúsculas.
Hoje vi uma fotinho dele, sorriso largo no rosto, asas de anjo.
Foi o Amor que o mandou a mim?
Dói pensar que ele possa ter sido mais um instrumento do Amor para me preparar para a partilha definitiva com um homem, para o amor aqui e agora. Mas é esse o exercício do desprendimento, do desapego, que o Amor ensina. Deixar livre para reencontrar – e no reencontro a resposta se é ou não.
Sinto a dor, porém não sofro. Amo com os suspiros mais delicados que encontro.
Era ele um anjo do Amor?
Ou beijei o Cupido sob os olhares desnudos dos amantes de O Beijo?
A chuva engrossa lá fora, pois não choro externamente. Choro aqui dentro. Não choro por posse frustrada, choro pela felicidade do encontro, dos retalhos de mim mesma fazendo sentido quando costurados com os retalhos dele, tinta dourada, brilhante. Reconheço o brilho no meu olhar, o beijo da memória e da parede e do quadro e do postal que procuro no meio de tantos, tantos recuerdos de viagens, e o vermelho do sangue que confirma a mulher biológica que sou. Pois a mulher-humana, a mulher-Maria-e-Lillith que está em minhas entranhas, foi ele quem me fez lembrar.
Com ternura.
Com mãos ágeis e corpo disponível.
Acordes mais profundos e dilacerantes da música.
A chuva não vai parar tão cedo!
É mais que um beijo. Identifico uma entrega. Um enlace dourado, uma costura de retalhos dele e dela, uma fusão de partes, dois inteiros formando um todo luminoso e colorido, uma experiência orgástica e cósmica.
Não sei quando me deparei com a tela de Gustav Klimt pela primeira vez, num livro ou num postal. Mas me lembro quando a vi no museu em Viena, ao vivo. O dia estava nublado e um pouco friorento, como hoje. (Olho meu verão pela janela e não o reconheço. Chove chuva fina nesse dia de céu cinza esbranquiçado sem vontade de sair lá fora, vento úmido e frio contrastando com o calor do apartamento e do ventre quente e sanguinolento, que lateja feminilidade biológica. Não reconheço meu verão! No toca-CD, Concierto de Aranjuez segue firme e embriagante, nas mãos de Alexandre Lagoya e da Monte-Carlo National Opera Orchestra, em três atos – ao contrário da versão de Miles Davis, que vai numa tacada só). Klimt, então, volto a Klimt, e ao dia em que vi O Beijo ao vivo. Frente a frente, encontro quase inesperado, embora anunciado, não tinha expectativas. Apenas entrei na sala e vi. A tela reluzia, linda e envolvente, trazendo-me uma ponta de tristeza por admirá-la só, sem ninguém ao meu lado, sem nenhum homem que me enlaçasse e me beijasse. Entrei na tela e fui beijada. O inesperado da entrega. Eu me entreguei.
Isso aconteceu em 2003, creio. Verão europeu de 2003, mas como o verão brasileiro de 2007 de céu cinza esbranquiçado, chuva fina e algum frio. Sozinha, embora tão emocionalmente acompanhada. Onde estão todos?
Nesse momento, me recordo de apenas um. E ele basta.
J.
Reprodução de O Beijo, tamanho real, na parede rubra, vermelho cor de vinho tinto olhado através da luz. Vermelho do sangue que me percorre e que jorra hoje de mim. Era a segunda vez, pois a primeira foi em outro lugar, em outro quarto, não dele, não nosso, já que era o caminho natural dos sentimentos e dos desejos e estávamos longe das paredes rubras. Se já não tínhamos a novidade da primeira vez, tínhamos a intimidade da segunda. O Beijo, os beijos, o enlace, as entregas, Caio Fernando Abreu sempre definindo tão bem as coisas: esses pedacinhos desconexos de nós mesmos que fazem sentido quando o Outro nos enxerga.
Ele compreendendo sua energia masculina, eu em reconhecimento de minha energia feminina, fronteiras de idade e de nacionalidade totalmente diluídas num mar de puras descobertas. Havia doçura e selvageria, havia respeito e firmeza, havia um deslumbramento de ambos e por motivos diferentes. De relance, quando os olhos se desviavam daqueles olhos escuros de sombrancelhas grossas, eu via o Beijo. Eu dava um beijo, eu recebia um beijo. Reluzíamos os dois.
Faz pouco tempo e já tenho saudade.
Uma história que começou Jules e Jim, por uma necessidade mútua e tripla de partilha e troca e entrega e fusão e doação, mas que virou eu e J. apenas.
Ele mais alto e mais delgado, ele delicado, ele incomodado com as vozes de seus julgamentos internos, ele em franca aprendizagem do Amor. Aquele Amor, das maiúsculas.
Hoje vi uma fotinho dele, sorriso largo no rosto, asas de anjo.
Foi o Amor que o mandou a mim?
Dói pensar que ele possa ter sido mais um instrumento do Amor para me preparar para a partilha definitiva com um homem, para o amor aqui e agora. Mas é esse o exercício do desprendimento, do desapego, que o Amor ensina. Deixar livre para reencontrar – e no reencontro a resposta se é ou não.
Sinto a dor, porém não sofro. Amo com os suspiros mais delicados que encontro.
Era ele um anjo do Amor?
Ou beijei o Cupido sob os olhares desnudos dos amantes de O Beijo?
A chuva engrossa lá fora, pois não choro externamente. Choro aqui dentro. Não choro por posse frustrada, choro pela felicidade do encontro, dos retalhos de mim mesma fazendo sentido quando costurados com os retalhos dele, tinta dourada, brilhante. Reconheço o brilho no meu olhar, o beijo da memória e da parede e do quadro e do postal que procuro no meio de tantos, tantos recuerdos de viagens, e o vermelho do sangue que confirma a mulher biológica que sou. Pois a mulher-humana, a mulher-Maria-e-Lillith que está em minhas entranhas, foi ele quem me fez lembrar.
Com ternura.
Com mãos ágeis e corpo disponível.
Acordes mais profundos e dilacerantes da música.
A chuva não vai parar tão cedo!
Temos muito em comum
Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique.
Nos conhecemos numa tarde quente de um domingo em janeiro. Havíamos nos falado por telefone um dia antes – ele me telefonou à noite, depois das dez e meia, dizendo que fazia parte da mesma organização internacional que eu, se poderia me encontrar, etc. Contou também que, segundo meu perfil na apresentação dos membros da ONG, tínhamos muito em comum. Ele também gostava de cinema, poesia, literatura, teatro. Voz bonita. Meu sotaque preferido no mundo. Ele me telefonava de outro país. Vizinho.
Ele vinha com a namorada, avisou.
Ok, sem problemas.
Ele telefonou tarde, mas eu estava acordada suspirando e olhando a lua e as estrelas da minha janela, deitada no futon.
Naquele momento, meu coração batia por alguém. Acelerado. Não de paixão, de puro tesão. E admiração. Eu não sabia, mas nos aproximávamos do átimo – daquele instante diminuto, minúsculo, em que nossas trajetórias opostas iriam se cruzar. Eu, largando a razão rumo aos chamados do coração. Ele, abandonando o mundo das emoções rumo aos imperativos da razão.
Na manhã do domingo, fiz o que tinha fazer.
Precisava de um CD de músicas românticas, dessas pop-melosas, que ajudam a gente a sonhar acordada. Que parecem um narguile auditivo. Pois fui à Fnac e o comprei. Lembrei-me do moço, da namorada, comprei para ele um livro do Carlos Drummond de Andrade, tendo o cuidado de escolher a edição com os meus poemas favoritos. Para a namorada, um CD do Rômulo Fróes (que descobri graças a outra fonte de suspiros, que logo aparecerá em outra crônica). Não precisava comprar nada, nem para mim (a libido e o calor se encarregavam de me entorpecer), mas resolvi presentear o mundo com sentimentos. E assim foi.
Nos encontramos, os quatro: eu, ele, a namorada e um amigo em comum, também da organização.
A voz e o sotaque, lindos. Ele, maravilhoso. Namorada bonitinha, novinha e simpatiquinha.
Ele, de novo, maravilhoso.
Libido confusa. Um certo instante de mareação.
Dei os presentes, ambos contentes.
Tomamos uma cerveja. Falei da vida, da minha vida. Planos, mudanças, sonhos, loucuras. Ele falou dos dele – planos, vontades, sonhos, loucuras. Faltavam as mudanças de fato, que existiam em minha vida e não (ainda) na dele. Alguém falou, ele, acho: temos muito em comum. Olhei a namorada, novinha, anos-luz atrás da gente, sorrindo, olhos esverdeados atentos, mãos dadas (com ele) embaixo da mesa. Temos muito em comum.
Eu me perdi na volta para casa. Não no caminho, que posso trilhar até de ponta-cabeça. Me perdi dentro de mim, a música pop-melosa do CD recém-comprado ecoando na cabeça, os pontos de sensibilidade do meu corpo latejando, Drummond, Drummond, Drummond, a voz dele, o sotaque preferido, desejos, desejos.
Cheguei em casa quente. Naquela madrugada, depois de uma conversa maluca por um desses programinhas de mensagens instantâneas, o homem do átimo apareceu em casa. Tomamos vinho, comentamos os azulejos azuis – quase sempre azuis – das cozinhas dos apartamentos alugados e fizemos amor. A história se desenrolou sem desenrolar, pecados íntimos, razão versus emoção, o tiro da roleta-russa, o luto das begônias, deixe ir.
E faz alguns dias, o ano já acabando, dezembro, meses e meses e vivências e viagens e experiências e declarações e descobertas e pensamentos e sentimentos depois, a lembrança do homem maravilhoso de sotaque sedutor e voz linda apareceu com uma força gigantesca que quase caí sentada. Ficou latejando na cabeça. Primeiro, veio seu nome. Depois, seu rosto. Depois, sua voz. Depois, a frase: temos muito em comum. Depois, a recordação do livro de Drummond. E o poema que ele me mandou e eu jamais comentei. Quem é ele, então? E por quê?
Ele não sai de minha cabeça. Em meu ser, um imperativo para ir atrás dele. Ou ao encontro dele, o que acontecer antes.
Descobri que parte em menos de duas semanas para a Europa. Ficou mais longe. Eu até iria ao país vizinho, mas... Europa?
Eu lhe escrevi. E agora, como adolescente, confiro minha caixa postal eletrônica diariamente para ver se há alguma resposta, se ele se lembra de mim, se eu de algum modo também comecei a latejar lá do outro lado.
Respeito minha intuição, mas ela é misteriosa e suas motivações são mais complexas que os oráculos de antigamente. Estive no antigo templo dedicado a Apolo, com o oráculo de Dydima. Dydima, diga-me: o que é que é? Quem é esse homem? E por que não me deixa mais em paz?
Menos libido, mais o imperativo, isso é que é estranho. Ecoando: temos muito em comum. Temos muito em comum. Temos muito em comum. Ele vai à Europa para tentar estudar algo de teatro, de artes, me contou um amigo. Ele não sai da minha cabeça. Ontem à noite pensei que, depois das dez e meia, ele fosse me telefonar. Como fez um dia. Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique. Mas já não sei se quero a explicação ou a história de fato, acontecendo em tempo real, comigo como protagonista ao lado dele, do homem maravilhoso, de voz linda e sotaque preferido.
Temos muito em comum.
Nos conhecemos numa tarde quente de um domingo em janeiro. Havíamos nos falado por telefone um dia antes – ele me telefonou à noite, depois das dez e meia, dizendo que fazia parte da mesma organização internacional que eu, se poderia me encontrar, etc. Contou também que, segundo meu perfil na apresentação dos membros da ONG, tínhamos muito em comum. Ele também gostava de cinema, poesia, literatura, teatro. Voz bonita. Meu sotaque preferido no mundo. Ele me telefonava de outro país. Vizinho.
Ele vinha com a namorada, avisou.
Ok, sem problemas.
Ele telefonou tarde, mas eu estava acordada suspirando e olhando a lua e as estrelas da minha janela, deitada no futon.
Naquele momento, meu coração batia por alguém. Acelerado. Não de paixão, de puro tesão. E admiração. Eu não sabia, mas nos aproximávamos do átimo – daquele instante diminuto, minúsculo, em que nossas trajetórias opostas iriam se cruzar. Eu, largando a razão rumo aos chamados do coração. Ele, abandonando o mundo das emoções rumo aos imperativos da razão.
Na manhã do domingo, fiz o que tinha fazer.
Precisava de um CD de músicas românticas, dessas pop-melosas, que ajudam a gente a sonhar acordada. Que parecem um narguile auditivo. Pois fui à Fnac e o comprei. Lembrei-me do moço, da namorada, comprei para ele um livro do Carlos Drummond de Andrade, tendo o cuidado de escolher a edição com os meus poemas favoritos. Para a namorada, um CD do Rômulo Fróes (que descobri graças a outra fonte de suspiros, que logo aparecerá em outra crônica). Não precisava comprar nada, nem para mim (a libido e o calor se encarregavam de me entorpecer), mas resolvi presentear o mundo com sentimentos. E assim foi.
Nos encontramos, os quatro: eu, ele, a namorada e um amigo em comum, também da organização.
A voz e o sotaque, lindos. Ele, maravilhoso. Namorada bonitinha, novinha e simpatiquinha.
Ele, de novo, maravilhoso.
Libido confusa. Um certo instante de mareação.
Dei os presentes, ambos contentes.
Tomamos uma cerveja. Falei da vida, da minha vida. Planos, mudanças, sonhos, loucuras. Ele falou dos dele – planos, vontades, sonhos, loucuras. Faltavam as mudanças de fato, que existiam em minha vida e não (ainda) na dele. Alguém falou, ele, acho: temos muito em comum. Olhei a namorada, novinha, anos-luz atrás da gente, sorrindo, olhos esverdeados atentos, mãos dadas (com ele) embaixo da mesa. Temos muito em comum.
Eu me perdi na volta para casa. Não no caminho, que posso trilhar até de ponta-cabeça. Me perdi dentro de mim, a música pop-melosa do CD recém-comprado ecoando na cabeça, os pontos de sensibilidade do meu corpo latejando, Drummond, Drummond, Drummond, a voz dele, o sotaque preferido, desejos, desejos.
Cheguei em casa quente. Naquela madrugada, depois de uma conversa maluca por um desses programinhas de mensagens instantâneas, o homem do átimo apareceu em casa. Tomamos vinho, comentamos os azulejos azuis – quase sempre azuis – das cozinhas dos apartamentos alugados e fizemos amor. A história se desenrolou sem desenrolar, pecados íntimos, razão versus emoção, o tiro da roleta-russa, o luto das begônias, deixe ir.
E faz alguns dias, o ano já acabando, dezembro, meses e meses e vivências e viagens e experiências e declarações e descobertas e pensamentos e sentimentos depois, a lembrança do homem maravilhoso de sotaque sedutor e voz linda apareceu com uma força gigantesca que quase caí sentada. Ficou latejando na cabeça. Primeiro, veio seu nome. Depois, seu rosto. Depois, sua voz. Depois, a frase: temos muito em comum. Depois, a recordação do livro de Drummond. E o poema que ele me mandou e eu jamais comentei. Quem é ele, então? E por quê?
Ele não sai de minha cabeça. Em meu ser, um imperativo para ir atrás dele. Ou ao encontro dele, o que acontecer antes.
Descobri que parte em menos de duas semanas para a Europa. Ficou mais longe. Eu até iria ao país vizinho, mas... Europa?
Eu lhe escrevi. E agora, como adolescente, confiro minha caixa postal eletrônica diariamente para ver se há alguma resposta, se ele se lembra de mim, se eu de algum modo também comecei a latejar lá do outro lado.
Respeito minha intuição, mas ela é misteriosa e suas motivações são mais complexas que os oráculos de antigamente. Estive no antigo templo dedicado a Apolo, com o oráculo de Dydima. Dydima, diga-me: o que é que é? Quem é esse homem? E por que não me deixa mais em paz?
Menos libido, mais o imperativo, isso é que é estranho. Ecoando: temos muito em comum. Temos muito em comum. Temos muito em comum. Ele vai à Europa para tentar estudar algo de teatro, de artes, me contou um amigo. Ele não sai da minha cabeça. Ontem à noite pensei que, depois das dez e meia, ele fosse me telefonar. Como fez um dia. Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique. Mas já não sei se quero a explicação ou a história de fato, acontecendo em tempo real, comigo como protagonista ao lado dele, do homem maravilhoso, de voz linda e sotaque preferido.
Temos muito em comum.
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