quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sem açúcar

(MFV; serei uma dessas?)

— Sem açúcar.
— Perdão?
— Quero o café sem açúcar.
— Ah, sim.


23°
16h32


O que ele escreveu mesmo? Aliás, o que ele não escreveu? Buscava as entrelinhas. As entrelinhas do que ele disse. Buscava justamente o que ele não disse. Por que ele deixou de dizer? Não sei se ele sente, não sei se ele não sente. Ele não diz. Ele não disse. Bem, ele escreveu. Algumas vezes, sentimos saudade de coisas que, quando se apresentam, talvez não sejam totalmente como as planejamos. Será que devemos aceitá-las tais e quais aparecem?


23°
16h38


Suspiro longo e profundo. O suspiro mais longo do mundo. O mais profundo suspiro do mundo.


22°
16h45


Não sei o que pensar. Sinto: sinto um espinho delgado adentrando pele adentro, corpo adentro, esperança adentro. Eu tinha uma esperança. Ando ansiosa demais. Parecia a pessoa certa na hora certa, mas sem certezas, mas sem que eu estivesse certa disso. Ou ele. Ou seja, nada. Ou tudo. Não sei o que pensar. Sinto: não me deixe aqui sozinha, por favor. Choro. Choro morno e silencioso, choro público.


23°
16h57

― Moça, por favor, acabou o guardanapo.
— Já lhe trago. Algo mais?
—...


23°
17h01


Merda.
Não tinha grandes expectativas. Só queria que fosse ele. Que ele fosse “ele”. Não planejei relação nenhuma, não sonhei com nenhum encontro excepcional, não consegui nem nos imaginar fazendo amor. Só queria que fosse ele. Porque ele não nasceu de nenhum empurrãozinho de minha razão. Porque, inclusive, minha razão ficava fazendo joguinhos de autossabotagem para mim e para ele. Porque ele simplesmente me atraiu. Porque meu corpo, meu coração, minha inquietude o pediam, todo o tempo. Porque fui surpreendida por meus próprios sentimentos. Porque saí de meu script. Porque... não sei de nada.


21°
17h14


Sinto frio. Sinto dor. Sinto solidão.


23°
17h35


Não fui arrebatada. Ele não me arrebatou. Nem eu o arrebatei. Talvez eu persiga justamente isso: um homem que me arrebate. Um cavaleiro que me pegue pela cintura, não me deixe pensar, e me leve para dentro de seu castelo-coração. Um homem que, ao olhar para mim, sorria ao sentir-se tão prometido. Que me faça sorrir, prometida. Persigo um homem que me arrebate e que seja arrebatado por mim. Será esse meu erro, “perseguir”?
Sou uma romântica de merda.


23°
17h59


“Travessia”, de Milton Nascimento, ecoando entranhas adentro. “Vou querer amar de novo/ e, se não der, não vou sofrer./ Já não sonho/ hoje faço com meu braço o meu viver.”


21°
18h04


Mais um daqueles suspiros imensos. Meu mundo, neste momento, cabe nesse suspiro. Mas eu fiquei maior que meu mundo. E afundamos, eu e meu mundo, em meu coração. Que também cabe nesse suspiro. Sim, de fato é imenso. Um suspiro imenso.
— Um chá quente, por favor. E broas. Broas de fubá.


22°
18h25


Eu me lembrei do cheiro de sua barba. Achei estranho aquele cheiro. Não me senti nele, sabe. Era um cheiro que não me incluía. O cheiro de sua barba não me incluía. Porque você não me inclui. Você me beijou como retribuição dos meus sentimentos por você, não foi? Sua barba o denunciou. E eu compreendo você, sabe. Fomos ambos surpreendidos. Eu, por esses sentimentos malucos todos. Você, por minha verborragia corada e sôfrega. Até me lembro de que lhe falei: “não estou loucamente apaixonada, não é isso”.


23°
18h26

Não estou loucamente apaixonada, não é isso.


24°
18h28

Não entendo mais nada. De mim mesma, de você, do mundo, de alguém.


22°
18h30

— Por favor, um outro café.
— Sem açúcar?
— Sem.


23°
18h43

Tampouco quero voltar para esse mundo aí. Estou cheia. Cansada de Obama, Netanyahu, Ahmadinejad, Sarkozy, Chávez. Cansada da revista Veja. Cansada das merdas ditas e feitas pela bancada ruralista no congresso nacional. Cansada da impunidade – dos corruptos e dos milicos ex-torturadores da ditadura brasileira.

Peço dispensa de minha humanidade hoje nesse mundo de merda. Mas estou trancada. Só poderia fugir para seus braços, se você quisesse me receber. Mas você aparentemente não quer.

Como você escreveu? Não gosto de “não sei”, mas agora é o que me vem à mente. Como levar adiante isso?

Quero ser dispensada de ser humana por hoje, pelamordeDeus!


23°
18h58


Sou uma romântica de merda.


22°
19h09


— A conta.
Venta, isso, venta, venta, venta noite fresca de outono. Me venta inteira, me reinventa, me arrebenta. O escuro não me deixa ver as pegadas, mas eu sei que elas estão aqui. O escuro não me deixa ver as feridas, mas eu sei que elas estão aqui. Enquanto isso, enfrento esse mundo imundo e sem fundo. Enfrento a solidão do abrir-se. A solidão do doar-se. A solidão do ‘não’. O dãodãodão da solidão. A imensidão da solidão.

Nessa cidade de 19 milhões de habitantes, estou sozinha com essa tal imensidão da solidão. Que cabe no meu suspiro. Então, esse suspiro realmente é grande.

E eu sou uma romântica de merda.
Sem açúcar.

3 comentários:

Projeto Eutanásia disse...

Belo Horizonte, 6 de maio de 2010.
Fernanda,
Conheci o seu blogue por intermédio do tio Décio. Toda vez que nos encontramos ele me conta das suas aventuras, de seus devaneios. Sem mesmo lhe conhecer, já sou seu fã, pelas histórias contadas pelo tio e, agora, pelas coisas que li nesta página. Também sou jornalista, mas nas horas vagas (?) arrisco escrever poemas, prosas e afins. Por sugestão de um amigo, criei há pouco mais de três anos, um blogue colaborativo chamado Projeto Eutanásia. Começamos apenas eu e ele. Hoje, contamos com mais de vinte colaboradores que mantém o Projeto vivo, espalhando um pouco de lirismo para os que curtem. Sei que seu tempo é corrido, mas é inevitável que eu lhe faça este convite. O que você acha de escrever para o Projeto? Nada com prazos ou muito compromisso. É, realmente, algo mais despojado.

Aguardo um retorno seu.
Um forte abraço do fã,

Daniel Rubens Prado.

ps: adorei esta última publicação. Especialmente o “Eu sou uma romântica de merda. Sem açúcar”.

NelsonMP disse...

Acho que deve conhecer.... em todo caso...
sobre a imagem das borboletas... há um romance importante que chama: "O Colecionador" de John Fowles.
A solidão é benigna, faz parte do processo de individuação e vai gradualmente nos colocando em contato com a nossa própria essência (Alma).
Já este livro trata de uma solidão doentia que ao invés de conduzir a uma transformação, acaba por desembocar numa grave distorção desse processo.

NelsonMP disse...

Que bom! O açúcar finge um doce que não é, padronizando todos os doces no sabor cana. Ele quer nos fazer acreditar que as coisas só tem o sabor de superfície. Sem ele vamos aprendendo a sentir lá no fundo o doce verdadeiro, abrindo as portas para toda a rica paleta de doces existentes, a maioria ainda invisíveis ao paladar acostumado aos refrigerantes, e isso sem efeitos colaterais. Acredito que o romantismo profundo e sem açúcar é perfeitamente possível.