À querida e saudosa Paula,
que buscou o conforto desde a janela do 9° andar,
em 2003
As 17h e alguns minutos desse sábado 29 de agosto foram diferentes. A luz – havia algo com a luz do sol, incisiva diante da poluição e dos vidros espelhados. A luz estava mais densa e mais vermelha que a habitual. A luz sangrava? Da cobertura do edifício do Sesc Paulista, onde funciona um café, eu tentava desvendar os segredos daquela tarde, dessa cidade, de um fragmento de vida. No mesmo momento, bem próximo a mim, um outro fragmento de vida se dissipava. Havia um garotinho sozinho ao lado do binóculo. Por algum motivo sua avó correu para a esquerda, seu pai já tinha ido antes. Por que deixaram o menino sozinho?
Permaneci mais um instante – que pareceu longo e indefinido – absorta nas reflexões diante da megalópole austera e reluzente que eu via desde o balcão daquele café. Quem sou eu para ela? Que significados meus essa cidade guarda? Um dia decifrarei seus segredos incrustados em minha pessoa? Intrigada por algum sentimento alheio, porém, virei a cabeça para trás. Minha amiga Michelle me buscava com os olhos, tremendo de susto. Nos abraçamos.
Agora imagino D.
D. vestiu sua blusa listada e uma calça escura. Miúda, descendente de orientais, embora de meia idade, parecia mais jovem. Ajeitou os cabelos, que chegavam quase no ombro. Naquele sábado, D. saiu de casa com uma certeza. Essa certeza não lhe fazia nem mais nem menos feliz, apenas tranquila. Tornava o fardo mais suave. Talvez tenha até sentido um agradável bem-estar com a morna luz da tarde, enquanto caminhava rumo ao prédio do Sesc Paulista. Talvez tenha notado o casal de adolescentes que sorria numa cumplicidade marota. Talvez tenha notado a moça de bolsa imensa e salto agulha. Talvez tenha notado o homem acanhado de ar cansado. O rapaz com a camisa do São Paulo. As duas senhoras de xale. Talvez.
Talvez, pela primeira vez em muito tempo, D. tenha conseguido enxergar a vida que se passava a seu redor. E tenha sentido esperança. Acolhimento. Pertença. Talvez D. tenha ficado na dúvida quando subiu ao 14° andar do Sesc Paulista. Quando cruzou com a moça de óculos de hastes vermelhas, absorta diante do fragmento de horizonte. Quando pediu seu café para a simpática garota do atendimento. Quando viu aquele jovem pai com seu garotinho, paparicados os dois pela avó. Mas D. tinha sua certeza e, naquele sábado de luz avermelhada, sua certeza lhe fazia bem. Que sentimento gentil, meu Deus, depois de angústias intermináveis. A certeza era maior que a dúvida.
D. subiu calmamente na mureta. O rapaz achou esquisito. A calma dela era tanta que ele pensou se tratar de uma funcionária. D. encontrou um apoio para os pés na parte externa, equilibrou-se. O rapaz se aproximou:
-- Você precisa de ajuda?
D. não respondeu. O rapaz se deu conta, num átimo, e tentou segurá-la pelos pulsos. Sua mãe correu para lá.
Michelle, que estava no mezanino, viu o corpo cair. Ouviu o barulho.
A luz sangrava, sangrava muito, sangrava ardorosamente a vida de D.
Eram 17h e alguns minutos, mas eu não consegui mais olhar nos olhos da megalópole, porque ela fingiu não me ver. Havia tanta gente na rua essa hora... Mas a luz... a luz estava vermelha demais.
D., se eu não estivesse tão absorta, talvez tivéssemos nos cruzado no café. Talvez eu tivesse notado você, sua calma tão diferente de outras calmas que eu já conhecesse. Talvez, D., eu tivesse puxado papo com você e comentado um sentimento meu desta manhã.
I. é considerada uma estrela. Quanto se espera de I! Recordes, vitórias surpreendentes, exibições perfeitas. Há dez dias ela chegou ao Mundial de Berlim como bicampeã olímpica. Classificou-se com facilidade para a final do salto com vara. Mas, conforme admitiu depois, o excesso de autoconfiança tirou sua concentração. Excitada com a possibilidade de bater mais recordes, perdeu o foco quanto ao mais básico: saltar. Queimou suas três tentativas. A decepção foi geral – falou-se muito em fracasso, falha, vexame. “Eu precisava perder em Berlim”, ela disse. “Tinha de ver o esporte de outra maneira, por outro ângulo, não só do topo.” E, nesta sexta-feira, na Golden League em Zurique, I. não só conquistou uma fácil vitória (contra as mesmas adversárias de Berlim), como estabeleceu novo recorde para o salto com vara: 5,06m. I. aprendeu a vencer quando foi derrotada. E não deixou que seus demônios interiores a subjugassem.
Eu teria gostado muito de ter partilhado essa notícia com você, D. Teria ficado feliz em lhe dizer como a história de I. me emocionou. I. deve bater novos recordes. Eu talvez mude de São Paulo e sinta saudade da luz avermelhada. E você, D., esteja com Deus.