domingo, 30 de agosto de 2009

Uma canção para D, a desconhecida, e para I, a russa

À querida e saudosa Paula,
que buscou o conforto desde a janela do 9° andar,
em 2003


As 17h e alguns minutos desse sábado 29 de agosto foram diferentes. A luz – havia algo com a luz do sol, incisiva diante da poluição e dos vidros espelhados. A luz estava mais densa e mais vermelha que a habitual. A luz sangrava? Da cobertura do edifício do Sesc Paulista, onde funciona um café, eu tentava desvendar os segredos daquela tarde, dessa cidade, de um fragmento de vida. No mesmo momento, bem próximo a mim, um outro fragmento de vida se dissipava. Havia um garotinho sozinho ao lado do binóculo. Por algum motivo sua avó correu para a esquerda, seu pai já tinha ido antes. Por que deixaram o menino sozinho?

Permaneci mais um instante – que pareceu longo e indefinido – absorta nas reflexões diante da megalópole austera e reluzente que eu via desde o balcão daquele café. Quem sou eu para ela? Que significados meus essa cidade guarda? Um dia decifrarei seus segredos incrustados em minha pessoa? Intrigada por algum sentimento alheio, porém, virei a cabeça para trás. Minha amiga Michelle me buscava com os olhos, tremendo de susto. Nos abraçamos.



Agora imagino D.
D. vestiu sua blusa listada e uma calça escura. Miúda, descendente de orientais, embora de meia idade, parecia mais jovem. Ajeitou os cabelos, que chegavam quase no ombro. Naquele sábado, D. saiu de casa com uma certeza. Essa certeza não lhe fazia nem mais nem menos feliz, apenas tranquila. Tornava o fardo mais suave. Talvez tenha até sentido um agradável bem-estar com a morna luz da tarde, enquanto caminhava rumo ao prédio do Sesc Paulista. Talvez tenha notado o casal de adolescentes que sorria numa cumplicidade marota. Talvez tenha notado a moça de bolsa imensa e salto agulha. Talvez tenha notado o homem acanhado de ar cansado. O rapaz com a camisa do São Paulo. As duas senhoras de xale. Talvez.

Talvez, pela primeira vez em muito tempo, D. tenha conseguido enxergar a vida que se passava a seu redor. E tenha sentido esperança. Acolhimento. Pertença. Talvez D. tenha ficado na dúvida quando subiu ao 14° andar do Sesc Paulista. Quando cruzou com a moça de óculos de hastes vermelhas, absorta diante do fragmento de horizonte. Quando pediu seu café para a simpática garota do atendimento. Quando viu aquele jovem pai com seu garotinho, paparicados os dois pela avó. Mas D. tinha sua certeza e, naquele sábado de luz avermelhada, sua certeza lhe fazia bem. Que sentimento gentil, meu Deus, depois de angústias intermináveis. A certeza era maior que a dúvida.

D. subiu calmamente na mureta. O rapaz achou esquisito. A calma dela era tanta que ele pensou se tratar de uma funcionária. D. encontrou um apoio para os pés na parte externa, equilibrou-se. O rapaz se aproximou:
-- Você precisa de ajuda?
D. não respondeu. O rapaz se deu conta, num átimo, e tentou segurá-la pelos pulsos. Sua mãe correu para lá.
Michelle, que estava no mezanino, viu o corpo cair. Ouviu o barulho.
A luz sangrava, sangrava muito, sangrava ardorosamente a vida de D.
Eram 17h e alguns minutos, mas eu não consegui mais olhar nos olhos da megalópole, porque ela fingiu não me ver. Havia tanta gente na rua essa hora... Mas a luz... a luz estava vermelha demais.



D., se eu não estivesse tão absorta, talvez tivéssemos nos cruzado no café. Talvez eu tivesse notado você, sua calma tão diferente de outras calmas que eu já conhecesse. Talvez, D., eu tivesse puxado papo com você e comentado um sentimento meu desta manhã.

I. é considerada uma estrela. Quanto se espera de I! Recordes, vitórias surpreendentes, exibições perfeitas. Há dez dias ela chegou ao Mundial de Berlim como bicampeã olímpica. Classificou-se com facilidade para a final do salto com vara. Mas, conforme admitiu depois, o excesso de autoconfiança tirou sua concentração. Excitada com a possibilidade de bater mais recordes, perdeu o foco quanto ao mais básico: saltar. Queimou suas três tentativas. A decepção foi geral – falou-se muito em fracasso, falha, vexame. “Eu precisava perder em Berlim”, ela disse. “Tinha de ver o esporte de outra maneira, por outro ângulo, não só do topo.” E, nesta sexta-feira, na Golden League em Zurique, I. não só conquistou uma fácil vitória (contra as mesmas adversárias de Berlim), como estabeleceu novo recorde para o salto com vara: 5,06m. I. aprendeu a vencer quando foi derrotada. E não deixou que seus demônios interiores a subjugassem.

Eu teria gostado muito de ter partilhado essa notícia com você, D. Teria ficado feliz em lhe dizer como a história de I. me emocionou. I. deve bater novos recordes. Eu talvez mude de São Paulo e sinta saudade da luz avermelhada. E você, D., esteja com Deus.

terça-feira, 25 de agosto de 2009


Dobra as dóceis pernas quando caminha, fera felina e humana,
Aninha mansidões em trechos extensos de bem-querer
E profundas indignações em cantos obtusos de seu peito circular
E caminha e caminha e caminha
Já que nunca chega e não chega nunca e nunca não chegará

Solidões são sólidos limões que correm escorrem morrem no Solimões?
Estalactites ecoam dúvidas deprimentemente individuais
– seiva: fissuras são normais

A frieza das indiferenças das incompreensões dos descompassos e dos marcapassos
socioeducativoculturais – puros sais de banho
O apelo ardente do frio lá fora clamando por coragens interditas e paciências infinitas
Na era do gelo – mero cobertor para a incessante dor
Desdobram contrastantes interações com esse tal de “mundo lá fora”
(não use aspas)

Agora: -pare com isso de ferimentos experimentos excrementos e jumentos
De quem quer que seja, sejam meus, seus, nossos, ou dele!
Cuide do bolo empantumado no forno de suas – não minhas – excomunhões
Pare, pare, pare de falar de cumprir de exibir de esculpir obrigações,
Por que não me rasuro de suas contas caras do passado?

Paz, pelamor, paz
Silêncio, sêclemente, ouvidos

Fera felina caminha e caminha, caminha as dóceis pernas que se dobram
Na dor no salto no bote no desapego na oração e na morte
São vastas vastas vastas essas trajetórias inconclusas e difusas
São vastos vastos vastos esses ires e voltares em tons estelares
Novos grandes largos frescos ares
Ah, humana felina santa cruel princesa enternecida,
Dama e bruxa no beabá.

Quase, quase, quase e lá
Um horizonte ofuscado pelo tempo kairós de uvas sem caroço e de mulheres sem moços
Um heróico esforço de delicadamente mastigar
O fulgor o estupor o pavor o temor de ultrapassar
A fronteira entre o existir e um inevitável eternizar-se.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Não deixe o rio morrer!




Um misto de homenagem e apelo pela vida eterna do Rio São Francisco, o Chico dos meus amores mais ternos, 100% brasileiro.

domingo, 23 de agosto de 2009

minha vida não cabe num coque

pura irresponsabilidade é deixar que um desconhecido decida sobre uma mudança em vida alheia. ainda mais se ele é um cabeleireiro que nunca a viu antes. você o provoca, de um jeito maroto, e diz: quero ficar diferente. aí ele manda bala.

agora, estou de quarentena do cabelo solto. e não reconheço a cara esquisita que aparece no espelho.

incompletude (ou: um girassol no gelo)


Uma lágrima, um impulso.
Um quase-susto.
O espelho já não se detinha
À face, muito menos ao disfarce:
Estava ali, alma desnuda,
Em processo de muda,
De desprendimento.
Fluxo contínuo, a grande jornada,
Uma presença intensa,
Manifestada.
Um entendimento verdadeiro.
Era quem era – e isso se lhe revelava ofuscante.
Um universo inteiro,
com mais existência adiante.
Palavra como força que move:
Faça-se!
Do significado ao significante,
Um átimo, um instante.
E lá se materializava o ritual.

Revolutionary Road


Assistiu a “Foi apenas um Sonho” e acabou dormindo com sede, sem sonhar. Abriu o jornal, leu sobre Sarney, Taleban, aumento da criminalidade, compra de terras férteis na África por grandes investidores, mandos, desmandos, um tal de cinema crítico, nota sobre socialite inventando moda, uma bermuda que acaba com gordura localizada, uma crônica banal de algum escritor pseudo. Vomitou. Venceu a preguiça e o frio de 12 graus, passou o batom que quase não usava, pôs óculos escuros e partiu. Alguém até lembrou de registrar no obituário, mas ela já estava, enfim, livre, leve, longe e em outra dimensão.



"And if you walk along and if you lose your way,/
Don't forget the one who gave you this today/
Follow True Love"
Cat Stevens

sábado, 22 de agosto de 2009

"Estúpido, ridículo e frágil é meu coração"


Não seria jamais chamada para um comercial de xampu, não receberia bônus de cinco dígitos no final do ano nem estrelaria uma campanha pela especulação imobiliária. Anônima e invisível, circula pelas esquinas e avenidas tentando escapar do aspirador de diferenças, que mantém a pobreza mas apaga a heterogeneidade.

Está à deriva; é uma náufraga em sua própria sociedade.



"Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas."
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Pequenina eternidade


Ainda de pijamas, ela abriu a porta, com os cabelos desgrenhados e os olhos inchados de tanto doer os pequenos vazios de sua existência. Aquele dia estava cinza, não havia apetite nem calor, mas ele a abraçou assim que entrou, num silêncio carinhoso e aconchegante. Nesse instante, ela constatou, surpresa, que seria para sempre.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

metamorfose


Foi quando Maria das Dores descobriu, por fim, que podia ser feliz: ao raspar o fundo da panela de doce com os dedos. Naquele instante, não houve marido inconstante, filhos desbocados ou patroa a ralhar. Existiam ela e os prazeres ínfimos do viver.


germes germânicos

Quando ele beijou lambeu arranhou o fundo do poço e, no meio de todos os clichês possíveis, constatou que já não haveria mais salvação para sua lavoura de tomates esborrachados em plurais sem “s” e abobrinhas feito praga, brotando aos montes por todos os poros, ele enfim olhou. E, ainda sob os bugalhos de seus chavões imprestáveis para abrir portas mas úteis em todas as outras aplicações, fez desse olhar – do primeiro ao segundo e depois o terceiro – sua tábua de salvação. Ao olhar, salvo ao menos um fragmento, disse a si mesmo entre arrotos e escarros, antes de tombar alucinado e inconsciente, sujo de pó e poeira. Ainda assim, inconscientemente, escavou uma fresta para a expressão mais pura que carregava em si. Porém, medroso e arrogante, não abriu mão de todo o resto: mero fim de feira. Pobres dos pulsos marcados de fugas.

E foi então que, ao olhar e com o olhar, se libertava de si mesmo e de todas todas todas as carcaças apodrecidas e largadas no restante de seu ser, o ser para o mundo, aquele mais visível e aparente. Seu mau hálito carregava frases feitas pedindo para serem dissolvidas imediatamente – e, entre alguma risada e boas parcerias, sempre recorria à cachaça para aplacar seu nervosismo por existir. Existir e, assim, ser descoberto em todas as suas farsas. Ao menos, era humano e assumia – havia gente que gostava dele por esse pedacinho.

E foi então que ele viu aquelas pernas, antes de tudo e de todos, aquelas pernas que ainda estavam a buscar e, decepcionadas, queriam esconder-se embaixo de uma calça ou de uma mesa. Ele não queria o todo – e a dona das pernas, embora quisesse um “ser inteiro”, sentia-se cansada demais das inconstâncias do gênero oposto para carregar um homem de verdade naquele momento. Ela insistia em falar no leve, na leveza, na necessidade do discurso não-assertivo. Ela era bem assertiva quando falava alto e longamente sobre a leveza. E, quando sorria inventando uma placidez para a irritação dormente lá lá lá no fundo, pedia clemência ao mundo que a deixava solitária. Assumamos: naquele instante, ela não queria dar satisfação a ninguém. Um fragmento verdadeiro era suficiente para seu deleite de mulher-fêmea.

Até que ele quis domar as pernas com suas velhas e manjadas piadas. Desfazer os laços longos dos sapatos de bailarina no caminho dos tornozelos aos joelhos aplicando os truques tirados frescos de sua lavoura de banalidades insossas. Mas foi pelo fragmento do olhar dela que o olhar dele recebeu acolhimento. Um flerte pelo retrovisor dos encontros, aquele pedaço de mundo, um espelhinho de reconhecimento. Duas carências unidas pela pureza mais sincera que o momento poderia propiciar. O fedor se unia ao perfume e tudo cheirava ao humano em estado primitivo. E, então, que se danasse o mundo, os demais, os amigos e os inimigos, as verdades recém-proferidas em tom de prosódia ou de discurso psicologuês. Fragmentários e fragmentados, assumidíssimos, eles se uniram. Pernas, mãos, é esse pedacinho, sabe, é esse pedacinho que me encanta, a justificativa ecoava entre os dentes, onde nem fio dental passa. Deram-se aos germes, os mais rígidos, os germes germânicos.

Eles se lançaram, juntos, juntinhos, grudados pelas extremidades mais óbvias, à droga mais pura e mais poderosa. E já que me mandaram à merda, cada qual a seu modo, pouco me importo com o final dessa história, da qual só sei um fragmento. E isso me basta, é claro.