Hoje me despedi de um tio da infância.
Houve roupas de cor preta, choros, orações e velas. Houve reencontro de laços e muitos abraços.
Somos finitos. E a finitude às vezes desespera porque inexata. Não a creio insensata, mas admiti-la revolve o fundo dos fundos e deixa a água turva, turva de verdade.
Hoje fiquei ainda mais longe da infância. E de meu tio, cujos contornos repousavam serenos acompanhados por flores e véus. Vestia o terno do casamento, tio viúvo, porque da tia já havia me despedido faz tempo, levava sua vara de pescar e seu chaveiro do São Paulo. Hoje me lembrei, novamente, de que não só os tios envelhecem. Eu também envelheço. Não sou mais a menina daquela infância povoada de tios. Parte da areia da minha própria ampulheta já mudou de lado.
Pouco a pouco, os tios vão se despedindo. Outros tios da infância se foram antes, e sei, com aperto no coração e olhos nada enxutos, que outros, os outros todos irão. Sinto saudade dos tios todos e saudade da memória que eu tinha com os tios.
Sinto saudade do meu pai.
Por que dói tanto a despedida? Com ou sem fé, por que dói?
De tempos em tempos, a finitude vem nos recordar de que deixamos muitas coisas para depois. Que, por motivos frouxos e roxos, não dizemos "eu te amo", "me desculpe", "eu preciso de você", "te perdôo" na hora certa. Colocamos baterias incansáveis nos relógios com a doce enganação de que eles nunca vão parar de funcionar. Eles talvez não. Nós... nós sim.
A finitude nos pergunta: a quantas anda sua existência?
Minha resposta me acalmou.
Hoje, quando me despedi de meus tios, revi meus primos de segundo grau, filhos dos primos que são os filhos dos tios. E pensei que, um dia, talvez os filhos dos primos se lembrem de sua infância povoada de primos-tios. E eu esteja entre eles, sobrevivendo nas recordações, em instantes fugidios, em breves flashes de sorrisos e carinhos.
Vi minha mãe caminhando pelas veredas.
Vi irmão, cunhada, outros tios, primos, filhos de primos caminhando pelas veredas.
Imaginei todos meus conhecidos e amigos e queridos caminhando pelas veredas.
E, mais que a despedida do tio, talvez o que realmente doeu hoje tenha sido a aceitação do exercício do desapego. Senti saudade por antecipação.
Senti vontade de cabê-los todos no meu abraço, num grande abraço carinhoso. Senti vontade de que partilhássemos ainda muitos e muitos momentos.
É a vida que me emociona, no fim das contas.
É a vida de cada instante de carinho, de cada pequena disponibilidade, de cada oportunidade de partilha, de cada poema colhido junto no mundo -- que quantas vezes deixamos escapar, meu Deus, por motivos bestas.
Não temos tempo.
Não temos dinheiro.
Não temos paciência.
Não temos compreensão.
Não temos coragem.
Nos falta sensibilidade.
Nos falta atenção.
Nos falta disponibilidade.
Nos faltam veredas para caminhar.
Infinito enquanto dure. Mas somos finitos, não custa recordar.
Um comentário:
estamos num trem.
a gente anda e as coisas ficam...
o que a gente pode levar são apenas as recordações das paisagens...
boa viagem!
obrigada pelo texto!
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