Impossível preparar o futuro. Impossível deixar a casa arrumadinha, porque tudo se bagunça de modo inexorável, porque basta respirar e...! Um punhado de partículas se desloca daqui para lá, desorganizando a pseudo-ordem, dando início a uma ecatombe no microscópio e no microcosmo. Isso é só o começo. Linha longilínea que liga o farfalhar de borboletas no quintal da casa de minhas tias no interior geográfico até monstros marinhos que engolem Jonas no interior da consciência. Em ondas.
Eu vivia duas horas à frente.
E, com todo o carinho e alguma pretensão,
Dava uma ajeitadinha no mundo
Para que, quando meu agora fosse o agora dele,
Quando daqui a duas horas ele vivesse o que vivo agora,
Ele pudesse encontrar flores no vaso,
Água no filtro, a prateleira sem pó,
Eu sendo eu mesma, já descansada de todas as cascas e mantas,
Desobrigada de tudo, de tudo, de todos.
Deitada no sofá. Ou na cama. Ou no tapete.
Impossível preparar o futuro, mesmo vivendo duas horas à frente dele. Quando eram duas horas em seu relógio, eu já estava nas quatro. E não tinha mais o mesmo frescor das duas. E mesmo que eu o encontrasse todo faceiro às duas, eu não saberia quem ele seria às quatro. Porque duas horas mudam a gente, em duas horas o mundo muda, de duas mudas podem brotar flores ou vermes, a gente emudece ou amadurece.
Eu brincava de atrasar o relógio
Só para experimentar a sensação de estar no mesmo tempo que ele.
Esse é o nosso tempo, até parece que tem gosto!
Mas ele fugia sem querer do meu abraço, pois meus braços cansavam
E, quando ele chegava ali, eu já estava pagando contas, trabalhando, xingando o governo, passando na padaria, colocando as toalhas molhadas no varal. Eu já não estava mais disponível.
Por que eu era tão assim-como-sou a ponto de estar duas horas à frente? Se eu pudesse ficar duas horas na frente dele... De acordo com o manual de fusos horários, poderíamos buscar algum ponto onde fosse possível acertar os nossos tiques e taques. Um lugar onde as horas fossem iguais e, enfeitiçados, vivêssemos sob o mesmo ritmo. Eu não me aborreceria mais ao vê-lo, duas horas antes, já abandonando o barco, enquanto eu seguia tão entusiasmada em navegar nas duas horas seguintes. Nem me sentiria culpada quando, duas horas depois, percebesse que, de tão esquecida dele, não havia deixado rastro de minha passagem ali duas horas antes.
Quando líamos o mesmo livro e combinávamos de começar a leitura juntos, eu sempre estava dois capítulos à frente. Porque ele nunca admitia levantar mais cedo para estar de acordo com a minha hora. E eu me indignava em ter de atrasar meus afazeres só para abrir o livro segundo a hora dele. Não queríamos desorganizar nossas agendas.
Mas eu fingia distração,
Embora quisesse deixar o futuro ajeitadinho
Para quando ele chegasse.
Ele fingia desprezo,
Embora se lembrasse de catar sua sujeira
Para que, duas horas depois, não pusesse equivocadamente a culpa em mim.
No fundo, ambos tentavam controlar a vida, duas horas adiante ou atrás. Nos momentos em que suspirávamos e nenhum dos dois pensava em nada, coincidíamos. Ficávamos tão juntos que era impossível distingüir dois seres ocupando o mesmo espaço. Mas esses eram momentos, pequenos e passageiros.
Duas horas. Às vezes, quando a pilha do relógio acaba, eu tenho a ilusão de que ele me alcançou. Ou de que eu realmente o esperei, sem tanta pressa.
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