Os dias têm sido estranhos. Favoravelmente estranhos, como um prato novo e desconhecido e saboroso. Assim têm sido meus dias.
Pontas diversas de uma vida diversa atando-se à revelia, mas com harmonia, divertindo a dona da vida: eu.
Dona de uma vida, eu? Que responsabilidade. Quem é dono de cachorro sai com ele para passear. Quem é dono de gato não descuida da areiazinha. Quem é dono de planta busca sol, busca sombra, rega. Quem é dono de vida não pode descuidar. Mas são os donos que mais descuidam, os donos de vida, segundo estatísticas informais. Donos de peixe, de cachorro, de gato, de periquito, de plantas e de jardins inteiros aparecem como responsáveis, ativos e atenciosos. Donos de vida muitas vezes nem se dão conta de quem têm uma vida. E vivem olhando para a parede em vez de mirar a janela. E não passeiam suas vidas, não regam suas vidas, não alimentam suas vidas, não oxigenam suas vidas. Muitos ficam aborrecidos diante de suas vidas, apenas lembrando e recolhendo as cacas todas. E não são poucas.
Dona de uma vida que faz caca às vezes, mas que me entretém muito. Uma vida que, então, como dizia, tem se descoberto cotidianamente. De descobrir-se: tirar a coberta e fazer descobertas, as duas coisas. Minha vida deu para correr um tantinho na minha frente e me levar assim, quase voando, aos cantos e aos barrancos e aos encantos do mundo. Gracinha essa vida.
Aprendi a pegar a vida no colo e suspirar junto com ela. Ela se nutre de meus sorrisos e de meus desesperos. Quando se acomoda embaixo das cobertas, rouba um pouquinho a mais de lençol, mas eu não ligo. Pois, na hora do banho, quem sempre gasta mais água sou eu. A vida... a vida sabe das coisas.
E nesses dias estranhos a vida tem farejado um monte de gente. Estou distraída e, repentinamente, surpresa: alguém. Alguém que a vida farejou no meu passado recente, no meu passado remoto, no meu presente ambíguo, no fundo do pensamento, no lapso de um espirro. Essa gente que me reencontra e que eu encontro de novo. Depois de pouco ou de muito tempo. Donos de vidas essas pessoas também. De vidas que se farejam, pois as vidas farejam. Vidas ronronam e semeiam. São vidas, enfim.
Eu brigava muito com a vida. Não aceitava suas intuições e tentava impor-lhe meus caprichos. Depois a vida revoltou-se comigo. Ficou arredia e ardida. No início desse ano, depois de uma explosão de energia, ela se encolheu, amedrontada. Aos poucos, foi revendo os ares lá de fora e me puxou para o mundo. Me puxa de novo agora, para outro lado. Quer seguir os passos dos profetas. Essa minha vida tem sede de um monte de coisa que nem sabe o nome. Escuta sons de que eu às vezes duvido. Sonha melodias que ninguém cantou ainda, mas já tem quem saiba. Minha vida gosta de mar.
Os dias têm sido bonitamente estranhos, porque a vida da qual sou dona anda travessa que só. Dona é modo de dizer; sou guardiã, benfeitora, tutora, madrinha. No fundo, talvez, seja eu a mascota da vida, a afilhada. Estranho os dias cheios de travessuras começadas porque são surpreendentes e inesperados. E essa gente toda querida farejada por vida.
Um prato novo e saboroso. Ah, vida está se alimentando direito. E fica doce depois, quando eu a acomodo aqui juntinho a meu coração.
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