I.
Dia desses, acordei na sombra.
Não porque eu quis. Simplesmente acordei.
Não sei se foi culpa da sopa de letrinhas ou da transposição de todo o Rio São Francisco da margem cerebral para a margem emocional e, barragens abaixo, a inundação de todo o ser. Não havia dor na sombra. Tampouco calor, porém não fazia frio.
Nada de escuro ou de escuridão. Da sombra eu via o céu e os gases todos da manhã misturando-se à poluição do dia em tons alaranjados que chegavam até a violeta mais tenra que eu tinha por perto. Havemos, sempre, de amanhecer. Mas naquele dia acordei, levantei, mas não amanheci. Fiquei alma perdida na madrugada de mim mesma.
Sob a sombra de mim mesma no mais completo meu de mim.
Acordei na sombra. Não lembro do sonho imediatamente anterior ao despertar. Fiz tudo normalmente: e por tanta normalidade nos gestos todos, nos mecânicos e nos criativos, nos orgânicos e nos alternativos, é que a sombra gritava. Não sentia autocomiseração nem a presença fantasmagórica do certo padrão de qualidade que me apavora vez ou outra. A sombra não era assustadora, sombreava e pronto – especialmente o que sobrava.
Quase uma alfombra.
Com tromba, pois saía som grave intermitente dando-me o pulso do dia, o ritmo da jornada.
II.
Era como se eu fosse bonequinho miúdo saído de filme de ficção científica controlando de um minúsculo quartinho, o quartinho dos botões, o quartinho dos fundos, toda a movimentação de um corpanzil com órgãos, com um tanque imenso de pensamentos e elucubrações, com um oceano aparentemente infinito de emoções gotejantes.
No dia imediatamente anterior, eu era o bonecão. O corpanzil. O tanque, o oceano. Naquele, o bonequinho. Nenhuma satisfação pelo “controle mecânico” daquele aparato todo. Era a função dele: funcione, então. Só.
Mas bonequinho preferiu trabalhar no modo econômico de energia, então o tanque virou tanquinho, o oceano virou oceaninho, o corpo continuou o corpo, mas comedido.
III.
Era um dia de universo de uma escala só. Sete notas, mas uma só escala. Sem dó maior. Sem sol maior. Sem si. Mi. Mim. Era eu quase em ré. Mas andava para frente. Pequeninamente, mas andava.
Dia sem pimentas, sem invenções, sem chamadas não atendidas. Dia nele mesmo e pronto.
Não tinha vontade de sorrir nem de chorar. Estava existindo e isso bastava. Não desgostava nem nada. O arroz ficou sem sal, o purê de mandioquinha ficou salgado, o peixe não assou direito, a salada de folhas feita horas antes se mostrava totalmente assada pelo limão. Não funcionou aplicar a lei das compensações: sem sal com muito sal, quase-assado com ultra-assado. O gosto não era bom, mas comi assim mesmo.
As pessoas me cansavam com sua simples presença. Não me irritavam nem me atiçavam. Me cansavam porque estavam todas muito parecidas, inspirando e expirando o mesmo ar viciado que eu também respirava, todos nós sem esboçar reações perante o não-acontecimento dos acontecimentos daquele dia, todos cheios de nós a desatar, eram nós e nós, e os nós em nós. Eu quase-sentia, porém não sentia de fato. Era só uma acomodação de não sei o quê que vem por aí.
Tinha me dado um branco: ainda é advérbio, não sei por quê pensei de supetão em preposição. Ainda, então. E então?
Algo estava muito remexido.
Algo novo tomando forma dentro e refletindo no diâmetro da cintura, na textura da pele, no olhar, à volta. Sombrinhas dentro da sombra.
Algo fundo acumulado vindo à tona.
O ralo entupiu e molhou todo o banheiro. Não exalava cheiro do ralo, ele era irredutível: a água do banho, a limpa e a usada. Mas eu não estava preparada para andar sobre as águas. Não ainda. Que direi de meu ralo interno.
À sombra, a água limpa e aquela que limpou. Algo deve ter ido embora encanamento afora, não tenho dúvida, suor limpo com suor sujo?
Nesse dia ninguém telefonou. Não houve novas mensagens em minha caixa postal telefônica ou internética.
Na sombra, longe de euforias ou depressões, fantasias ou idealizações, eu apenas observava. Não tomava parte em. Por isso, não senti pena pelo casal que dizia ser do interior e que ficara sem dinheiro para voltar para casa depois de uma consulta médica. Tinha os visto no dia anterior. Não fiz sexo por compaixão nem reconheci algum indício de tesão. Não tinha sangue flamejante no baixo ventre. Não arranjei desculpas para desculpá-lo nem culpas para culpá-lo. Não vislumbrava mais motivos para me ocupar dele. Não dei de ombros, tampouco ofereci meus ombros para carregar o que quer que fosse. Se sentia algo naquele dia, era um dor entre a cervical e a lombar. A cabeça estava um pouco pesada por fora. E o bonequinho começou a pesar por dentro.
IV.
(Silêncio)
V.
Não dá mais para voltar atrás ou voltar para trás. Ou trazer algo de lá. Não há proibições nem nada, nem houve. Fato inexorável. O chamado caminho sem volta.
Duas possibilidades, então: parar aqui, estabelecer acampamento, fechar os olhos para algumas coisas, abri-los para outras, cuidar da horta, criar um jardim, estudar a viabilidade de um pomar, considerar a hipótese de procriar, etc. Ou desentupir o ralo até o fim. Acolher, por ora, a água limpa e a água suja, o suor que sai e o que não sai, a sujeira que fica, a clareza que vem.
Não queria ter de optar por algo naquelas condições. Mas havia ainda um restante de arroz sem sal e de purê salgado, e com algum esforço resolvi, ao menos, encarar o ralo.
Tenho usado panos para secar o chão, não sei ainda quando vou enfrentar o fundão. As dores passaram, nem tive mal-estar. Espirro em alguns momentos e, naturalmente, fui sendo reintegrada à teia humana, reverberando aqui e ali.
Não ando sentindo muito, tenho estado um tanto cansada, cansada e tanto. No momento, dois chumaços de cabelo engaiolados há tanto tempo: a feminilidade e o ser-em-relação-a.
Uso havaianas cor verde-bandeira para andar no banheiro. Sobre as águas. Com toalha rosa-escuro enrolada no corpo ainda um tanto molhado.
Pensei assim: hmm, em nenhum momento precisei usar lâmpada, luz artificial. Achei que aquilo era bom. E o dia era novo, certamente, porque as sapatilhas laranjas esperavam -- hesitantes, mas alegres -- para serem usadas, a salada de vagem estava saborosa e eu acabara de brindar com amigos. Enmimesmei, mas não lá só ré dó mi fá fiquei.
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