O bilhete, por favor. Como não pagou a entrada? Aqui, nesta
metrópole, nesta megalocidade, você só entra se comprar seu ingresso. Preencha
esta ficha: quem é você – mas não se demore em considerações filosóficas, só
basta saber se você aparenta algum pedigree; quanto tem você – não há necessidade de
números precisos, mas é conveniente que diga quanto ganha e qual a origem
desses rendimentos; que quer você – de novo, não se perda em digressões
inúteis, apenas revele quais são seus objetivos na megalocidade. Não reclame
dos prédios sem história, agradeça morar perto de pontos de ônibus e do metrô,
atravesse a rua nas faixas – cada vez mais, os motoristas têm esperado os
pedestres – e não se descuide nas calçadas, é verdade que nem sempre bem
cuidadas. Ora, ainda há espaço para os que caminham... faça seu trajeto, sem
perder seu rumo. As esquinas podem ser perigosas na solidão.
Nos fins de semana pela manhã, em certos momentos de
silêncio, você consegue ouvir os pássaros. Ouve britadeiras, é certo, caminhões
recolhendo caçambas, buzinas, motos rasgando o asfalto, mas ouve pássaros. E
não só pardais. Ouve bem-te-vis. Ouve sabiás. Ouviria beija-flores se eles
cantassem em vez de beijar as flores. Flores! Beijos! Sim, existe amor em SP.
Há flores e beijos, nem sempre explícitos, nem sempre lícitos, mas aqui e ali estão
eles. Não perca seu bilhete. Não esqueça sua identificação. Compre o que
quiser, mas cuidado com a sedução das vitrines. Mãos pedintes estarão por todas
as partes. Mãos estendidas, corpos estendidos, vidas rendidas, outras não. Sim,
há lixo. Sim, há sujeira. Sim, a água que escorre quando chove só carrega um
quinto dos amores e mais de 100% dos dissabores. As existências se amassam em
trens, vans e ônibus lotados, as existências ficam cinzentas, tudo vira cinza
nessa megalocidade megalômana e maníaca. Mas você tem seu bilhete: você tem seu
espaço, ainda que amassado.
Finja que a história corre pelos encanamentos torpes dos
edifícios velhos – não antigos – e imagine outras eras, outras épocas
escondidas nas frestas e nos vãos. Épocas bandidas. Porque a história se
escreve à revelia. Por aqui, passaram índios, negros, colonizadores,
bandeirantes, imigrantes pobres e ricos, migrantes pobres e ricos, passam ainda
tantos, congestionamentos, engarrafamentos, passa a memória e passa também a
desmemória. Passarinho, passaredo, passados, passeios, passivos, paçocas e passagens. A
megalocidade regurgita frituras e fumaças. Aproveite as padarias, pão fresco,
sonho fresco, todos os dias, desde às 5 da manhã. Se sua vida tem 24 horas, a megalocidade lhe oferece oportunidades para
todas as vontades, com descontos ou promoções.
Suas pegadas não ficarão registradas nas estradas invisíveis
dessa metrópole. Os pombos ciscam as migalhas e somem com as pistas, você anda
por aqui e ninguém registra seus passos. Ninguém sabe, ninguém nunca saberá.
Anônima você, anônimo ele, mas posso apresentar um ao outro, ele mede sua
bunda, você repara no pomo de adão dele, ele prefere a mulher que se insinua
ali adiante, você o acha arrogante, ele tem um carro imenso, você não tem nada,
nem seios decentes, nem lábios atraentes, ele inventa uma desculpa e some, você
sorri e sai, você tem seu bilhete, direito para estar você tem, o tempo expira,
é certo, tudo expira, nada espera, o prazo de validade humano expira, você
espirra, porque o ar sempre será extremamente contaminado.
Não, não desista, resista, o sertanejo urbano é antes de
tudo um forte, você tem sorte, não escape, fique, não vá, é em vão ir. Finja que enxerga
horizonte, finja que ouve o bailar das folhas nos galhos das árvores espalhadas
pela megalocidade, finja que se inspira com a solidariedade que acontece aos
borbotões, mas às escondidas. A solidariedade some no cinza, o cinza engole as
maçãs, os moços ajeitam os trajes, os trajetos estão entupidos, os tubos estão
cheios de ratos, as resinas não suportam o frio, aqui faz frio mesmo quando faz
calor.
Me abraça, você diz. Às 11 e pouco da noite, em pé num
barzinho qualquer, noite de céu sem estrelas, noite sem vento ou suspiros, você
suplica: me abraça. Mas seu bilhete não lhe dá direito a afetos.
E você, então, sucumbe.
Um comentário:
Um bilhete que dá direito à entender é um bom bilhete.
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