Uma década de vida, mais de
mil quilômetros de distância e todo um alfabeto distinto nos separavam. Mas,
ainda assim, guardava a memória daqueles olhos azuis amendoados, amendoados de
um jeito que só os registros eslavos com heranças asiáticas podiam ser. Não
existiam muitos desses olhos no lado ocidental do mundo; de algum modo, eles conservavam
as andanças contínuas da humanidade em tempos imemoriais. E era isso que me
fascinava.
Eu o contemplava com ternura,
imaginando carícias minhas naquele cabelo tão loiro, naquela pele tão branca e
tão tenra, naquele peito ainda imberbe diante do amor avassalador. Carregava em
si as promessas de um homem que talvez pudesse me completar, mas era ainda um rapazote,
sistemático e protegido em seus conceitos de mundo, com as solas ainda
preservadas e um arsenal reluzente de possibilidades. Por isso, eu não ousava ultrapassar
a linha invisível de nossa amizade. Talvez fosse melhor preservar a doçura
daqueles olhos, esforçando-me numa espécie de contenção pouco usual para mim, a
arriscar perdê-los por volúpia. Ele me olhava como menina, ainda que minha
porção mulher-fêmea escapasse de quando em quando. Nesses momentos, ele se
espantava, engasgava, apertava os olhos azuis amendoados como se buscasse um
ponto longínquo num horizonte palpável. A Lilith que habita em mim suspirava
resignada, e eu retomava minha rota platônica por seu corpo, por seu coração,
por seus pelos quase invisíveis.
Jogávamos sinuca um dia. Numa
das pontas da mesa, quase dobrada ao meio, eu analisava as prováveis
trajetórias de uma bola de cor violeta. Na outra ponta, ele agachado olhava ora
para mim, ora para meu decote, às vezes para a bola de cor violeta. Sorria,
oferecendo-me inconsciente e inconsequentemente aquelas amêndoas azuis. Eu lhe
ofertava minhas colméias plenas de mel. Estivemos enganchados nessa troca por
não sei quanto tempo. Não consegui conter as lágrimas: era um choro suave e
emocionado, como se houvesse conquistado uma bênção ingênua para a porção de minha alma ansiosa por perdões.
Ele disse algo em russo,
quase captei seu cirílico. Não sei qual foi a trajetória daquela bola cor de
violeta. Apenas me lembro do abraço longo e terno, em silêncio, que recebi com
uma gratidão infinita. Houve um beijo rápido, quente, mas é da maciez daqueles
finos fios loiros, tão bem guardada no meu tato, e da pressão tão respeitosa
daqueles dedos em minha cintura que me lembro mais. Sempre me sinto purificada
quando penso nele.
Uma epifania, com nome de
apóstolo, em sua versão mais russa e mais provocativa. Quase um sacerdote dos
novos tempos.
2 comentários:
Um pouco mais de foco nesta cor, e você encontrará o seu Amor.
... me referi à cor da bola, não a dos olhos
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