Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
sábado, 27 de outubro de 2012
#naoexisteamoremSP
O bilhete, por favor. Como não pagou a entrada? Aqui, nesta
metrópole, nesta megalocidade, você só entra se comprar seu ingresso. Preencha
esta ficha: quem é você – mas não se demore em considerações filosóficas, só
basta saber se você aparenta algum pedigree; quanto tem você – não há necessidade de
números precisos, mas é conveniente que diga quanto ganha e qual a origem
desses rendimentos; que quer você – de novo, não se perda em digressões
inúteis, apenas revele quais são seus objetivos na megalocidade. Não reclame
dos prédios sem história, agradeça morar perto de pontos de ônibus e do metrô,
atravesse a rua nas faixas – cada vez mais, os motoristas têm esperado os
pedestres – e não se descuide nas calçadas, é verdade que nem sempre bem
cuidadas. Ora, ainda há espaço para os que caminham... faça seu trajeto, sem
perder seu rumo. As esquinas podem ser perigosas na solidão.
Nos fins de semana pela manhã, em certos momentos de
silêncio, você consegue ouvir os pássaros. Ouve britadeiras, é certo, caminhões
recolhendo caçambas, buzinas, motos rasgando o asfalto, mas ouve pássaros. E
não só pardais. Ouve bem-te-vis. Ouve sabiás. Ouviria beija-flores se eles
cantassem em vez de beijar as flores. Flores! Beijos! Sim, existe amor em SP.
Há flores e beijos, nem sempre explícitos, nem sempre lícitos, mas aqui e ali estão
eles. Não perca seu bilhete. Não esqueça sua identificação. Compre o que
quiser, mas cuidado com a sedução das vitrines. Mãos pedintes estarão por todas
as partes. Mãos estendidas, corpos estendidos, vidas rendidas, outras não. Sim,
há lixo. Sim, há sujeira. Sim, a água que escorre quando chove só carrega um
quinto dos amores e mais de 100% dos dissabores. As existências se amassam em
trens, vans e ônibus lotados, as existências ficam cinzentas, tudo vira cinza
nessa megalocidade megalômana e maníaca. Mas você tem seu bilhete: você tem seu
espaço, ainda que amassado.
Finja que a história corre pelos encanamentos torpes dos
edifícios velhos – não antigos – e imagine outras eras, outras épocas
escondidas nas frestas e nos vãos. Épocas bandidas. Porque a história se
escreve à revelia. Por aqui, passaram índios, negros, colonizadores,
bandeirantes, imigrantes pobres e ricos, migrantes pobres e ricos, passam ainda
tantos, congestionamentos, engarrafamentos, passa a memória e passa também a
desmemória. Passarinho, passaredo, passados, passeios, passivos, paçocas e passagens. A
megalocidade regurgita frituras e fumaças. Aproveite as padarias, pão fresco,
sonho fresco, todos os dias, desde às 5 da manhã. Se sua vida tem 24 horas, a megalocidade lhe oferece oportunidades para
todas as vontades, com descontos ou promoções.
Suas pegadas não ficarão registradas nas estradas invisíveis
dessa metrópole. Os pombos ciscam as migalhas e somem com as pistas, você anda
por aqui e ninguém registra seus passos. Ninguém sabe, ninguém nunca saberá.
Anônima você, anônimo ele, mas posso apresentar um ao outro, ele mede sua
bunda, você repara no pomo de adão dele, ele prefere a mulher que se insinua
ali adiante, você o acha arrogante, ele tem um carro imenso, você não tem nada,
nem seios decentes, nem lábios atraentes, ele inventa uma desculpa e some, você
sorri e sai, você tem seu bilhete, direito para estar você tem, o tempo expira,
é certo, tudo expira, nada espera, o prazo de validade humano expira, você
espirra, porque o ar sempre será extremamente contaminado.
Não, não desista, resista, o sertanejo urbano é antes de
tudo um forte, você tem sorte, não escape, fique, não vá, é em vão ir. Finja que enxerga
horizonte, finja que ouve o bailar das folhas nos galhos das árvores espalhadas
pela megalocidade, finja que se inspira com a solidariedade que acontece aos
borbotões, mas às escondidas. A solidariedade some no cinza, o cinza engole as
maçãs, os moços ajeitam os trajes, os trajetos estão entupidos, os tubos estão
cheios de ratos, as resinas não suportam o frio, aqui faz frio mesmo quando faz
calor.
Me abraça, você diz. Às 11 e pouco da noite, em pé num
barzinho qualquer, noite de céu sem estrelas, noite sem vento ou suspiros, você
suplica: me abraça. Mas seu bilhete não lhe dá direito a afetos.
E você, então, sucumbe.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
apóstolo
Uma década de vida, mais de
mil quilômetros de distância e todo um alfabeto distinto nos separavam. Mas,
ainda assim, guardava a memória daqueles olhos azuis amendoados, amendoados de
um jeito que só os registros eslavos com heranças asiáticas podiam ser. Não
existiam muitos desses olhos no lado ocidental do mundo; de algum modo, eles conservavam
as andanças contínuas da humanidade em tempos imemoriais. E era isso que me
fascinava.
Eu o contemplava com ternura,
imaginando carícias minhas naquele cabelo tão loiro, naquela pele tão branca e
tão tenra, naquele peito ainda imberbe diante do amor avassalador. Carregava em
si as promessas de um homem que talvez pudesse me completar, mas era ainda um rapazote,
sistemático e protegido em seus conceitos de mundo, com as solas ainda
preservadas e um arsenal reluzente de possibilidades. Por isso, eu não ousava ultrapassar
a linha invisível de nossa amizade. Talvez fosse melhor preservar a doçura
daqueles olhos, esforçando-me numa espécie de contenção pouco usual para mim, a
arriscar perdê-los por volúpia. Ele me olhava como menina, ainda que minha
porção mulher-fêmea escapasse de quando em quando. Nesses momentos, ele se
espantava, engasgava, apertava os olhos azuis amendoados como se buscasse um
ponto longínquo num horizonte palpável. A Lilith que habita em mim suspirava
resignada, e eu retomava minha rota platônica por seu corpo, por seu coração,
por seus pelos quase invisíveis.
Jogávamos sinuca um dia. Numa
das pontas da mesa, quase dobrada ao meio, eu analisava as prováveis
trajetórias de uma bola de cor violeta. Na outra ponta, ele agachado olhava ora
para mim, ora para meu decote, às vezes para a bola de cor violeta. Sorria,
oferecendo-me inconsciente e inconsequentemente aquelas amêndoas azuis. Eu lhe
ofertava minhas colméias plenas de mel. Estivemos enganchados nessa troca por
não sei quanto tempo. Não consegui conter as lágrimas: era um choro suave e
emocionado, como se houvesse conquistado uma bênção ingênua para a porção de minha alma ansiosa por perdões.
Ele disse algo em russo,
quase captei seu cirílico. Não sei qual foi a trajetória daquela bola cor de
violeta. Apenas me lembro do abraço longo e terno, em silêncio, que recebi com
uma gratidão infinita. Houve um beijo rápido, quente, mas é da maciez daqueles
finos fios loiros, tão bem guardada no meu tato, e da pressão tão respeitosa
daqueles dedos em minha cintura que me lembro mais. Sempre me sinto purificada
quando penso nele.
Uma epifania, com nome de
apóstolo, em sua versão mais russa e mais provocativa. Quase um sacerdote dos
novos tempos.
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