sábado, 8 de dezembro de 2012

eu e ele, um capítulo nosso

(ya sabes que es para ti)


Antes, *ela* era apenas um personagem em duas fotos bem colocadas na estante dos CDs. “E isso importa?”, ele rebateu, quando interrompi nosso primeiro beijo para apontar o tal porta-retrato, eu, toda acuada no sofá. Encostei meus lábios nos dele e contive sua pressa com minha língua. Aos poucos, encontramos um ritmo nosso, intenso como nós dois, insolente como nós dois, mas respeitoso à austeridade das histórias que nossos corpos carregavam, das histórias do mundo que nos transpassavam. Não, *ela*  pouco importava. Pouco importou até um mês e meio atrás.

Havia devorado meio saco de batatas fritas com a plena consciência de que isso não suavizaria a angústia de sempre e que a única serventia de meu ato rico em gordura saturada seria sublinhar o cansaço. Porque também me sentia uma espécie de gordura saturada: densa, saborosa, ciente de minhas propriedades, mas definitivamente perigosa para corações alheios. Corações alheios! Ele estava agora preparando sua viagem a Genebra a fim de encontrar *ela*, a nobre e digna *ela*, que terminava um curso de observadora internacional de processos eleitorais problemáticos. Em breve, disse ele com orgulho, *ela*  receberá uma missão para seguir a algum canto do mundo. Sem ele, obviamente. A tão bem-preparada *ela*  que aparentemente pouco se importava com a anatomia física e intelectual de seu ele, com sua arrogância de literário, sua habilidade em preparar arrozes variados e bifes à milanesa. O porto seguro desse homem que escrevia e transava com a urgência de quem dispõe de apenas uma hora: uma hora de divã, uma hora de visita conjugal, uma hora de descanso, uma hora de exercícios nas barras, uma hora de viagem até o recanto preferido na praia.

As minúsculas guerras cotidianas que cada ser humano trava diariamente dentro de si, estando o não consciente disso, são tão sangrentas e estúpidas quanto esses atos coletivos de catarse e barbárie. Eu sabia que alguma comoção lhe causava, ao mesmo tempo em que tentava eliminar qualquer possível expectativa que teimasse em brotar dentro de mim. Não estou apaixonado, você me entende? Não estou. Ele me repetiu isso três vezes num dia em que saímos. Outras três vezes três semanas mais tarde. Acho que já sei qual é seu número mágico, ironizei. Numa tarde de inevitável comoção, não quis me olhar e comentou que sonhara com três filhos. Sabia que, aos 50 e poucos anos de idade, era uma visão quase piegas e melancólica da tal família perfeita, mas, se sonhava com isso, fazer o quê? 

Ele voltou a tocar minha mão: "se não eu e *ela*..." Não disse mais nada. Eu não queria ouvir qualquer murmúrio, porque a única coisa em que pensava era em meu desejo imenso de ter um filho com ele. Que juntos pudéssemos escrever nossas obras, cuidar de orquídeas e de oliveiras-anãs, cozinhar especialidades várias e cuidar de um bebê. E que *ela* se apaixonasse por algum alto executivo das Nações Unidas, mudasse de nome, pintasse os cabelos e fosse para bem longe, deixando-me em paz e a sós com meu homem.

Mas hoje era uma quinta-feira como qualquer outra, passava das 14 horas, eu havia devorado a metade que restava das batatas fritas e aquela tarde de sábado de quase um mês atrás tinha virado uma fotografia em algum porta-retrato da memória dele. “E isso importa?”, ele teria perguntado.
 
Lonjuras.

Talvez naquela imagem escondida e largada entre as lembranças reprimidas de nossos corações estejamos ambos de olhos fechados, sonhando com tardes lilases nossas, à beira-mar.

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