domingo, 14 de agosto de 2011

Plástico vermelho



Era um dia daqueles. Pesado, modorrento, cheio de poeiras do passado teimando em grudar no suor do presente. Daqueles dias em que não há poesia possível no enfado de uma vida inteira. Daqueles dias em que o tempo se recusa a cumprir a programação habitual de 60 segundos formarem um minuto e assim por diante. Um minuto estava durando quase meia hora. Dia daqueles.

Acomodada no banco do fundo do vagão, fiquei ao lado da janela, mas longe da porta. Tudo bem, tudo bem, ia descer no fim do mundo, havia muito trilho ainda e o enfado do tamanho do mundo. Esse caminho longuíssimo para quê? Para chegar em casa e tudo continuar igual? Os outros passageiros pareciam padecer do mesmo aborrecimento. Caras fechadas, caras distraídas, olhares mortos ou cinzentos, todos querendo ir logo, porém ir para lugar nenhum. Estar no metrô, estar no trabalho, estar em casa, tudo dava na mesma. Estar já era um fardo; ser, então, nem se fale. E a porcaria da porta não fechava, quem o motorista estava esperando para dar a partida naquele trem?

Uma moça sorria no meio das manchas amorfas chamadas de gente por pura educação naquele fim de tarde, naquele fim de linha, naquele último vagão. A moça estava bem de frente, naqueles bancos que vão de costas. Que enjoo ir de costas, mas muitos não se importam. Para eles, o tempo passa ainda mais devagar porque se despedem com mais docilidade dos instantes. Talvez seja isso que cause enjoo em alguns, nos mais ansiosos. Ou nos mais defendidos. Mas a moça sorria, caramba. Como conseguia? Tinha um livro nas mãos. Claro, a moça sorria porque tinha um livro. Essa bolsa que carrego não me faz sorrir. O rapaz de gravata verde segurava uma pasta de couro e não sorria. A senhora ao lado mantinha apertada uma sacola de plástico e tampouco sorria. Só a moça com o livro. E já sorria antes mesmo de a porta fechar. Ufa, finalmente.

O livro estava coberto com uma capa de plástico vermelho. Ninguém mais encapa livro com esse tipo de plástico, meu Deus. Essa moça veio do túnel do tempo? Não parecia. Blusinha bacana a dela, não dava para ver os sapatos, mas ela tinha frescor. Esquisita essa capa. E, droga, não dava para ver o título do livro. Sobre o que seria? Uma história de amor? Não. Todas as histórias de amor são iguais. Começamos virgens e terminamos mais virgens ainda, só que no fim somos acidamente virgens e rancorosos. Como poderia haver espaço para um sorriso? Talvez ela esteja no começo do livro, então pode ser uma história de amor, ora. História de amor açucarada? Não, não. A moça tinha jeito de exigente. O modo de ler com avidez, os olhos dela não desgrudavam das páginas, os dedos firmes na capa de plástico. Talvez fosse um romance policial. Avidez com sorriso... Sorriso ao ler sobre um assassinato? A ficção nos permite extravasar agressividades-tabu: talvez seja o que nos mantenha ainda relativamente afáveis uns com os outros.

Agora ela apertou os lábios, que cara safada é essa? Em pleno século da solidão e do enfado, no dia em que a humanidade dentro daquele trem empurrava o tempo com desesperança e agonia, aquela mulher ousava existir. E resistir à modorrência cotidiana. Rosto nem bonito nem feio, ar simpático. Deve ser daquelas que, depois de umas taças de vinho, seguramente – e de modo sábio – aperta os lábios (como agora), fecha os olhos, dança leve, livre e solta no meio da pista, braços-pássaros, pés ágeis, quadris mais ágeis ainda. Uma alegria, uma energia, uma sensualidade. Os olhos pasmacentos dos machos presentes, antes ocupados com os alvos óbvios, a seguem vidrados.

Uma noite de sexo. Pela avidez com que a moça lê esse bendito livro com capa de plástico vermelho, deve ser uma descrição daquelas, que chegam até a palpitação dos músculos vaginais – das personagens, é lógico. Bem, há leitoras que, por tabela, também os sentem. Confessemos, por que hipocrisia numa hora dessas? A população imóvel do trem móvel, naquele tempo ausente, não parece a ponto de deixar sua apatia. Tampouco há sinais de outro espectador para a moça – e para mim. Então, confesso: já tinha sentido, sim, excitação ao ler certas passagens de livros, inclusive desses livros-cabeça que apenas eu, uma amiga e mais dois ou três críticos literários lemos. Meu Deus, a moça está gemendo baixinho, feliz. O homem mordiscando seus mamilos, passando a mão pelo interior de suas coxas, agora beijando o pescoço, tocando seu clitóris e... O que foi aquela encoxada, perto da escada? Quanto tempo fazia? Três semanas? Quase um mês. Ele a pegou de jeito. Foi tão rápido e tão bom. Talvez ela tenha suspirado agora. Chegou ao orgasmo? A personagem, quero dizer. Como o metrô é quente.

Essa franzida de testa. Pode ser que seja um livro de crônicas, e agora ela esteja lendo sobre a morte de uma galinha. Não era sobre isso aquele conto da Clarice? Divertido esse conto. Ela riu no começo, ficou meio triste em seguida, mas não mordeu safadamente os lábios depois. Nem franziu a testa. Era a hora da briga do casal? Rusga rimava com ruga e fazia sentido. A gente franze a testa quando não entende certas atitudes. Por exemplo: prometer ligar durante a semana. E sumir. E não dar notícias. E, depois de uns tantos recados no celular, torpedos e e-mails, uma resposta de uma linha só. Estou confuso, precisando de um tempo sozinho, foi bom estar com você, mas agora não rola. A moça ficou triste de repente. O que foi? Desculpa esfarrapada? Sim. O rapaz, no mesmo bar, com outra moça. Confuso, mas divertindo-se. O mesmo braço ao redor da cintura. A mesma piada da chamada para Tóquio. Os mesmos petiscos, o mesmo chope. Os olhos continuavam ávidos, mas ela realmente estava triste. Porque dói. Entre o despeito e o desrespeito, esse ponto é o que dói. Depois, um recado, um torpedo e um e-mail com a mesma mensagem irônica e afiada. Tirando satisfações, que decadência. A noite da encoxada foi tão boa que valia essa humilhação? Porque não foi só uma encoxada nem só encoxadas. Mas que história idiota é essa? Banal, tão óbvia, não, não e não. Quem leria tamanha bobagem? O livro de capa de plástico vermelho certamente é uma alegoria da sociedade contemporânea, de trens lentos e opressivos, de corpos e mais corpos se tocando sem qualquer pudor, mas sem qualquer amor, de braços estendidos para ninguém. Um livro sobre pessoas que não querem mais estar. Nem ali nem lá.

Por que a moça não havia escolhido ler algo original? Que merda de dia. As horas não passam. O telefone não toca. O trem não sai do lugar. É essa moça quem passa, quem toca, quem se movimenta. É essa moça com o livro de capa de plástico vermelho que, naquele segundo, faz a vida – qualquer que seja a definição para “vida” – acontecer. Por que nada muda? Queria fechar o livro, mas o livro não me pertence. Viro a página, então. O reflexo na janela me olhava triste. Não quero pena nem comiseração. Quero apenas... – ainda? – um romance em lugar de contos curtos e sempre finitos, muitas vezes ruins, ou então repetitivos. Um romance. Cenários diferentes, uma história que avança, personagens que não somem no meio da trama, estilo apurado, narrativa original. Capa de plástico vermelho: transparência e paixão. Sou de uma obsolescência medonha.

No amontoado de gente, não distingui mais a moça do livro. Onde se escondeu? Ela escapou da sonolência existencial da população do trem? A história acaba assim, então? Sem necessariamente ter um fecho? Saudade das narrativas da infância em que sempre existia um fim, ao menos uma linha, dando assim uma satisfação ao leitor. Acabou, sabe como é. Minha viagem também chegava ao fim. Bufei, desapontada.

Já na rua, noite anti-social, ser anti-social – dependo sem qualquer vontade da humanidade inteira –, ansiosa em pular para o dia seguinte, me senti cansada. Como se tivesse lido todos os ranços de uma história muito minha num livro. Naquela merda de livro de capa de plástico vermelho, mantido altivo e desafiante pela moça que sorria. No meio da massa aturdida pela realidade implacável, aquela mulher roubava os últimos golfos de energia emocional dos infames do mundo. Bem, talvez estivesse devolvendo-os.

Convenci o dono da papelaria a buscar, em sua sala de sobras, um pedaço de plástico vermelho desses de encapar. Sorte a minha que queria vermelho, me disse, pois era o único. Manchado de pó, resto de vendas antigas. Ninguém mais compra isso, afirmou o homem. Já em casa, encapei o molesquine novo e aspirei, com alguma excitação, o frescor de suas páginas em branco. Na primeira, com letras garrafais, escrevi: “Pois essa história termina aqui. Finalmente abro espaço para um recomeço”. Sorri, apertando os lábios, quase ofegante de tanto tesão.



sábado, 6 de agosto de 2011

corpaço, compasso

Certo dia, não sei quando, meu corpo proclamou independência: quero vida própria. Desvinculou-se da senhora excelentíssima razão e pediu permissão à alma para percorrer aprendizagens particulares e solitárias.

Agora, existe à revelia do que penso, do que quero, até do que sinto. Autônomo, reage inclemente às vibrações alheias. Intumesce, reverbera. Reconhece umidades, cheiros e vontades segundas – equivocando-se às vezes, gozando outras tantas. Meu corpo não partilha todos os seus amigos comigo; há momentos em que me assusto quando me dou conta de que há alguém a meu lado, me olhando simplesmente, numa tentativa quase sempre infrutífera de apreender minha alma por meio de meus poros. Porque nem sempre estamos de acordo, eu e meu corpo, sobre quem realmente temos de deixar entrar.

Meu corpo começa a aprender quando diminuir o compasso e aumentar a escuta. Nessas horas, a alma se aninha, a razão se aproxima, e me sinto inteira e presente.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Paredes verdes

E, logo cedo, num instante máximo de rebeldia, lancei-me com fúria contra as paredes verdes do meu quarto com umas quantas pinceladas de uma pachorrenta e meditativa tinta branca que encontrei ao acaso, num dia de prantos.

Manchava conscientemente aquelas paredes verdes com o ardor de uma fanática buscando o instante máximo, o orgasmo anímico, a resposta para as inquietudes filosóficas que vieram à tona com a rosa dos ventos, dos tempos, dos inventos.

Quantas, quantas, quanto, quanto, só de exclamar eu já me cansava afetivamente.

Pausa: ele me liga, histérico, descrevendo a atormentada noite de ontem, os vizinhos bêbados, a ex-mulher rançosa, o torpor familiar, a desalinhada entrevista de emprego. Histérico justifica-se pela negativa que não chega a me dar. Porque eu não digo nada, apenas comento: as paredes já não estão verdes. E ele: falo com você depois.

Havia fome, havia desejo, havia raiva, havia ainda os ecos daquela ausência inclementemente vivida em todos os recôncavos desse corpo que não para de me pertencer mais, mais, mais e mais. Havia haver, havia minha existência explodindo ansiosa e febril por meio das pinceladas sujas e puras daquele grito silencioso e inconcluso nas paredes verdes.

Para que, para que, para quando, para quando, só de exclamar eu já me respondia.

Pausa: um tomate rola abrupto de uma prateleira da geladeira e, fascinado com a gravidade, lança-se ao chão. Por um momento, esqueço as paredes, as sedes, as redes de salvação, e admiro aquele vermelho insólito e intacto me olhando, espantado, desde os baixos do móvel da cozinha. Se esse vermelho me amasse, minhas feridas não necessitariam desinfetante.

Ainda sinto a presença de todos os fantasmas nas esquinas e nos bancos dessa cidade, prestes a saírem por alguma porta e pedirem uma cerveja justamente naquele bar a que vou. Ainda sinto a presença de minha morte doída e oculta, pública e íntima na mesma medida, uma espécie de expiação e crucificação. Ainda dilacero o esquecimento ligeiro deles, seu desdém, sua leveza superficial e banal, e os lanço com saliva e tinta nas paredes verdes, pincelando, pincelando, pincelando até que os poros de concreto sangrem. Sangrem lembranças, sangrem perdões, sangrem ranhuras.

Pausa: o cheiro me enlouquece, eu cheiro tudo, a tinta, meu ranço, minha saudade, minhas esperanças, as parcas explicações que passaram por baixo da porta, o cheiro do almoço do vizinho, o cheiro da roupa lavada da vizinha, o cheiro da histeria telefônica dele, o cheiro do egoísmo torpe do outro ele, o cheiro da merda alheia, o cheiro do perfume alheio. Eu cheiro minha fé, minha tão pequena e grande fé, cheiro minha humanidade, cheiro o sangue que escorre de minhas gengivas e também o que limpa meu útero, cheiro o clamor que brota de minhas entranhas e de minhas intimidades, cheiro meu medo e minha coragem.

Cheiro o verde dessas paredes, cheiro o branco que as invade, sinto enjoo, sinto vontade de chorar todas as chuvas dessa parte do mundo, sinto amor, muito amor.

Que aqui se registre que meus sentidos estão em pleno funcionamento.
E que esse verde agora sujo das paredes, esse verde imperfeito, arranhado de branco e de dúvidas, esse verde feito humano, mulher e brasileiro, esse verde agora deixa essas paredes e vem habitar o vácuo, preenchendo a solidão que habita meu ser e faz brotar cravos onde deviam nascer sorrisos.
Que aqui se registre esse dia de verão em que o verde corrompido daquelas paredes verdes se transformou em mim mesma. No dia em que.

Era já noite e liguei o ventilador para me perdoar de meus pecados e secar meus molhados, encharcados, entupidos à luz das estrelas e da paz.