No dia em que meu chão sumiu, uma nuvem gigante avançou feito onda céu adentro. Eu estava, em pé, no Largo da Carioca, sem saber para onde ir: se para outros braços, se para o mar de Ipanema, se a chorar aos pés de Santa Teresa, se jogar minha sorte nas ruazinhas da Urca. No dia em que meu chão sumiu, eu era simplesmente uma mulher sozinha tentando absorver o ir e vir de tanta gente. Uma paulistana em meio a arranha-céus cariocas, enxergando familiaridade nos desconhecidos, torcendo para que aquela nuvem engolisse minha tristeza. Afinal, ele acabara de telefonar: me desculpa, mas não quero mais te ver.
Tínhamos nos conhecido numa de suas breves passagens por São Paulo a trabalho. Foi numa livraria, durante o lançamento de um compêndio de filosofia. Entre taças de vinho, ignorando os escritores, engatamos uma conversa sobre nossas banalidades mais essenciais. Quando ele me levou para seu hotel, para ver da cobertura do edifício a cidade iluminada naquela madrugada fria e aí sim falarmos de nossas vãs filosofias, eu ainda não tinha decorado seu segundo nome nem ele o meu. Luís-alguma-coisa, carioca, conversa com Ana-tralalá, paulistana, sob um céu nublado universal. Houve um beijo, um daqueles beijos que valem por semanas de malabarismos de sedução, e nada mais. Nem precisava.
Rumei para casa, ainda em transe pela noite tão especial, retomando frases dele ditas com charme e sotaque como se tivesse na mente um gravador quebrado. Na manhã seguinte, ele voltou ao seu “pequeno paraíso de dois quartos em Copacabana, a três quadras da praia”, com a promessa de não desaparecer. Nas semanas seguintes, vieram telefonemas, e-mails, torpedos via celular, muitos suspiros, risadas e um CD, que chegou para mim na véspera de uma viagem dele para o exterior. Assim você não me esquece, ele disse. Era uma coletânea de choros, chamada “Noites Cariocas”. Junto, veio um bilhete: em cada faixa, imagina que eu te conduza por meus recantos preferidos no Rio.
Naquele mês sem qualquer notícia dele, ao som de chorinhos diversos, recriei uma Cidade Maravilhosa dentro de mim, só minha e dele, emprestando da memória fragmentos já opacos de uma viagem feita há tempos e recusando qualquer notícia vinda da realidade (blitz, mortes, morros, violência, arrastões). Comíamos bolinho de bacalhau nos botecos pés-sujos nas tardes de sábado, passeávamos de mãos dadas por Ipanema nas manhãs de domingo e assistíamos juntos a shows diversos nas casas noturnas da Lapa. Sempre que eu me perdia pelas vielas de Santa Teresa, ele me encontrava com um sorriso e me presenteava com beijos como aquele da primeira vez. No fim de tarde, tomávamos suco num quiosque da Lagoa Rodrigo de Freitas. Depois, seguíamos com nossas vãs filosofias e banalidades essenciais, entre um chope e outro na Cinelândia. O que seria de nós, Luís e Ana? E, na Toca do Vinícius, nos deliciávamos com os segredos desvendados pelos chorinhos todos. Eu quase me esquecia que vivia em São Paulo; pensava que ao virar a esquina da Paulista com a Consolação, fosse encontrar o Real Gabinete Português de Leitura. Que ao caminhar no centro, logo veria a igreja de São Francisco da Penitência. E que, ao sair do trabalho com o dia ainda claro, pudesse caminhar um pouquinho à beira-mar.
Já havia se passado mais de cinco semanas, quando me dei conta de que não tinha ideia se Luís já voltara do exterior. Os passeios imaginários pelo Rio de Janeiro, acompanhados pelas faixas do CD, haviam amortizado aquela saudade doída e permeada por um desejo crescente e sôfrego de tê-lo nos meus braços. Telefonei, deixei recados. Escrevi e-mails, mandei torpedos. Um silêncio do outro lado. Dúvidas: será que ele está bem? Ansiedade: será que ele conheceu alguém?
Alguns dias depois, recebi algumas linhas dele. Pedia desculpas pela demora em responder, dizia que mal voltara de férias e já lhe tinham entupido de trabalho. Talvez viesse a São Paulo em algumas semanas. Ah, o CD? Havia gostado? Que bom. E, nada mais, um beijo, boa sorte. O que me chamou atenção, aliás, como se fosse um berro no meio do metrô, foi o fato de ele ter começado o e-mail com “Querida Paula”. Eu, que era a “DoidivANA”, a “ANAlógica”, a “Mariú-ANA” e outras Anas loucas, me transformara na séria e compenetrada Paula, a srta. segundo nome, segundo escalão, mera desconhecida. O que teria acontecido ao Luís, o obscuro Alberto?
Comprei uma passagem para o Rio no ímpeto. Fiz as malas, entre afobada e desaforada, enquanto ouvia o CD horas a fio. A libido, que não dava trégua, misturava-se à indignação. Telefonei, deixei recados, escrevi e-mails, mandei torpedos avisando que eu estaria lá, diante dele, totalmente Ana. Ele não se manifestou. Viajei mesmo assim. E, no dia em que meu chão sumiu, saí do Metrô Carioca e ouvi-o falar, no celular: me desculpa, mas não quero mais te ver. Uma nuvem gigante avançou feito onda céu adentro. E me levou de volta a São Paulo, horas depois, sem sequer ter confirmado se aquele Rio de Janeiro, o das fantasias, existia mesmo.
Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
domingo, 24 de outubro de 2010
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
~~ oceânica ~~
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada"
(Clarice Lispector)
Pois hoje, embora o sol não tenha se dado ao luxo de acordar cedo, consigo ver a linha do mar. Consigo ver o mar. Consigo me imaginar, oceânica e ondular, alcançando costas e continentes nunca antes tocados ou desbravados.
Pois já fui uma pessoa não-pessoa para um certo alguém-ninguém.
Pois já fui alma penalizada despenada, dispensada pelo simples fato de encantar alguém-ninguém desencantado.
Sonho baías, sonho encostar minha cabeça numa falésia aconchegante, sonho abraçar uma ilha-mundo. Oceânica, pois sim.
Pois me tornei um vento úmido e frio que ele espanta com álcool, flanela e fósforos.
Pois o que nunca soube me falar agora solta feito mariposinha de verão: e que mulher você é, que mulher.
Pois nunca fui uma “que mulher”. Fui uma pessoa despessoalizada, despersonalizada por um sentimento peçonhento de alguém-ninguém medroso e vaporoso.
Pois nunca estive ali, naquele recanto quente com os olhos cinzentos voltados para mim. Pois sempre estive cinza, ainda que colorida e quente, diante daqueles olhos que não enxergavam futuro em mim.
Hoje, entre identidades, identificações, passaportes e tarjeta de extranjera, tento recuperar o prejuízo que aquele alguém-ninguém provocou em minha alma tão humana e tão feminina. Por isso, quero entregar-me à pessoalidade – de mim, de si, do mar.
Por isso, não mais alguéns e sim homens.
Para um homem, uma mulher.
Para um alguém-ninguém, nada. E não no meu mar.
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