Hoje não tem beijo. Nunca mais vai ter. Não olho para trás, mas minha nuca o observa sorrateiramente. Ele ainda está lá, em pé, olhos baixos, ombros caídos. Sua prepotência contrasta com aqueles malditos ombros caídos. Agora constato: ele parece um armário mal-acabado. Um armário de cores pálidas, bloco compacto sobre duas palafitas. Ele fica lá, em pé. Ele espera a outra. Ele nem se importa mais em disfarçar. Não, me disse, devorando um bolo de chocolate – porque ele adora doce, porque ele se empanturra de doce para não se empanturrar de sentimentos, porque ele é feito de pedra e de pavor – não, não quero pertencer a ninguém. Então, antes de você, depois de você, antes das 20h, durante as 20h, depois das 20h, sempre haverá alguém. Uma outra, qualquer outra. Assim como você é uma-qualquer-você. Uma pessoa, diz ele ao telefone à outra, estou com uma pessoa. Naquele momento, diante daquele homem com uma horripilante e minúscula baba de desprezo escorrendo do lábio fino e encardido, naquele exato momento, não sou nada além de uma pessoa. Uma pessoa desprovida de pessoalidade, sem cheiro, sem sexo, sem suco, sem sangue. Uma pessoa-rubrica, um nada-pessoa.
Hoje não teve beijo nem nunca mais haverá. Não olho para trás, mas sei que ele permanece em pé, derrubando ainda mais os ombros, como se não suportasse a própria prepotência. Em dois, três segundos, tudo estará acabado, quando eu cruzar aquela porta, quando a outra chegar, talvez antes até, quando ele se sentar, tudo estará acabado. Definitivamente. Não, eu não olho para trás, mas minha nuca revela que ele procura migalhas sobre a mesa, que ele sente um certo desconforto, que o relógio marca um atraso que não deveria acontecer: o ponteiro já deveria ter avançado à hora seguinte, mas teima em girar em torno do traço anterior. Um traço-pessoa, um apêndice de qualquer coisa que deveria ter ficado dentro do armário.
Não guardo mais beijos, todos ressecaram, todos estragaram, cheios de carunchos, cheios de vazios, cheios de cansaço. Lavo desesperadamente meus lábios que quase tocaram aquela baba repugnante que pingava daqueles lábios finos e cínicos. Lavo desesperadamente as mãos que quiseram investigar as ranhuras daquele armário blindado. Lavo meu corpo, esfrego até sangrar todas as partes que roçaram o não-corpo daquele não-homem. Sangro, sangro doidamente, doídamente, sangro infelicidades dormentes, mas sangro humanamente até me expurgar.
Se eu pudesse, quebrava aqueles malditos ombros caídos para eles nunca mais derrubarem alguém. Se eu pudesse, arranhava aquelas infames palafitas que sustentam inverdades e sarcasmo. Se eu pudesse, ah, se eu pudesse, eu empurrava de volta toda a crueldade vomitada por aqueles odiosos e repugnantes lábios finos.
Tenho muito nojo.