domingo, 28 de outubro de 2012

[caí na rua e descobri que estava mais viva do que nunca.]

sábado, 27 de outubro de 2012

#naoexisteamoremSP





O bilhete, por favor. Como não pagou a entrada? Aqui, nesta metrópole, nesta megalocidade, você só entra se comprar seu ingresso. Preencha esta ficha: quem é você – mas não se demore em considerações filosóficas, só basta saber se você aparenta algum pedigree; quanto tem você – não há necessidade de números precisos, mas é conveniente que diga quanto ganha e qual a origem desses rendimentos; que quer você – de novo, não se perda em digressões inúteis, apenas revele quais são seus objetivos na megalocidade. Não reclame dos prédios sem história, agradeça morar perto de pontos de ônibus e do metrô, atravesse a rua nas faixas – cada vez mais, os motoristas têm esperado os pedestres – e não se descuide nas calçadas, é verdade que nem sempre bem cuidadas. Ora, ainda há espaço para os que caminham... faça seu trajeto, sem perder seu rumo. As esquinas podem ser perigosas na solidão.

Nos fins de semana pela manhã, em certos momentos de silêncio, você consegue ouvir os pássaros. Ouve britadeiras, é certo, caminhões recolhendo caçambas, buzinas, motos rasgando o asfalto, mas ouve pássaros. E não só pardais. Ouve bem-te-vis. Ouve sabiás. Ouviria beija-flores se eles cantassem em vez de beijar as flores. Flores! Beijos! Sim, existe amor em SP. Há flores e beijos, nem sempre explícitos, nem sempre lícitos, mas aqui e ali estão eles. Não perca seu bilhete. Não esqueça sua identificação. Compre o que quiser, mas cuidado com a sedução das vitrines. Mãos pedintes estarão por todas as partes. Mãos estendidas, corpos estendidos, vidas rendidas, outras não. Sim, há lixo. Sim, há sujeira. Sim, a água que escorre quando chove só carrega um quinto dos amores e mais de 100% dos dissabores. As existências se amassam em trens, vans e ônibus lotados, as existências ficam cinzentas, tudo vira cinza nessa megalocidade megalômana e maníaca. Mas você tem seu bilhete: você tem seu espaço, ainda que amassado.

Finja que a história corre pelos encanamentos torpes dos edifícios velhos – não antigos – e imagine outras eras, outras épocas escondidas nas frestas e nos vãos. Épocas bandidas. Porque a história se escreve à revelia. Por aqui, passaram índios, negros, colonizadores, bandeirantes, imigrantes pobres e ricos, migrantes pobres e ricos, passam ainda tantos, congestionamentos, engarrafamentos, passa a memória e passa também a desmemória. Passarinho, passaredo, passados, passeios, passivos, paçocas e passagens. A megalocidade regurgita frituras e fumaças. Aproveite as padarias, pão fresco, sonho fresco, todos os dias, desde às 5 da manhã. Se sua vida tem 24 horas,  a megalocidade lhe oferece oportunidades para todas as vontades, com descontos ou promoções.

Suas pegadas não ficarão registradas nas estradas invisíveis dessa metrópole. Os pombos ciscam as migalhas e somem com as pistas, você anda por aqui e ninguém registra seus passos. Ninguém sabe, ninguém nunca saberá. Anônima você, anônimo ele, mas posso apresentar um ao outro, ele mede sua bunda, você repara no pomo de adão dele, ele prefere a mulher que se insinua ali adiante, você o acha arrogante, ele tem um carro imenso, você não tem nada, nem seios decentes, nem lábios atraentes, ele inventa uma desculpa e some, você sorri e sai, você tem seu bilhete, direito para estar você tem, o tempo expira, é certo, tudo expira, nada espera, o prazo de validade humano expira, você espirra, porque o ar sempre será extremamente contaminado.

Não, não desista, resista, o sertanejo urbano é antes de tudo um forte, você tem sorte, não escape, fique, não vá, é em vão ir. Finja que enxerga horizonte, finja que ouve o bailar das folhas nos galhos das árvores espalhadas pela megalocidade, finja que se inspira com a solidariedade que acontece aos borbotões, mas às escondidas. A solidariedade some no cinza, o cinza engole as maçãs, os moços ajeitam os trajes, os trajetos estão entupidos, os tubos estão cheios de ratos, as resinas não suportam o frio, aqui faz frio mesmo quando faz calor.

Me abraça, você diz. Às 11 e pouco da noite, em pé num barzinho qualquer, noite de céu sem estrelas, noite sem vento ou suspiros, você suplica: me abraça. Mas seu bilhete não lhe dá direito a afetos.

E você, então, sucumbe.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

apóstolo



Uma década de vida, mais de mil quilômetros de distância e todo um alfabeto distinto nos separavam. Mas, ainda assim, guardava a memória daqueles olhos azuis amendoados, amendoados de um jeito que só os registros eslavos com heranças asiáticas podiam ser. Não existiam muitos desses olhos no lado ocidental do mundo; de algum modo, eles conservavam as andanças contínuas da humanidade em tempos imemoriais. E era isso que me fascinava.

Eu o contemplava com ternura, imaginando carícias minhas naquele cabelo tão loiro, naquela pele tão branca e tão tenra, naquele peito ainda imberbe diante do amor avassalador. Carregava em si as promessas de um homem que talvez pudesse me completar, mas era ainda um rapazote, sistemático e protegido em seus conceitos de mundo, com as solas ainda preservadas e um arsenal reluzente de possibilidades. Por isso, eu não ousava ultrapassar a linha invisível de nossa amizade. Talvez fosse melhor preservar a doçura daqueles olhos, esforçando-me numa espécie de contenção pouco usual para mim, a arriscar perdê-los por volúpia. Ele me olhava como menina, ainda que minha porção mulher-fêmea escapasse de quando em quando. Nesses momentos, ele se espantava, engasgava, apertava os olhos azuis amendoados como se buscasse um ponto longínquo num horizonte palpável. A Lilith que habita em mim suspirava resignada, e eu retomava minha rota platônica por seu corpo, por seu coração, por seus pelos quase invisíveis.

Jogávamos sinuca um dia. Numa das pontas da mesa, quase dobrada ao meio, eu analisava as prováveis trajetórias de uma bola de cor violeta. Na outra ponta, ele agachado olhava ora para mim, ora para meu decote, às vezes para a bola de cor violeta. Sorria, oferecendo-me inconsciente e inconsequentemente aquelas amêndoas azuis. Eu lhe ofertava minhas colméias plenas de mel. Estivemos enganchados nessa troca por não sei quanto tempo. Não consegui conter as lágrimas: era um choro suave e emocionado, como se houvesse conquistado uma bênção ingênua para a porção de minha alma ansiosa por perdões.

Ele disse algo em russo, quase captei seu cirílico. Não sei qual foi a trajetória daquela bola cor de violeta. Apenas me lembro do abraço longo e terno, em silêncio, que recebi com uma gratidão infinita. Houve um beijo rápido, quente, mas é da maciez daqueles finos fios loiros, tão bem guardada no meu tato, e da pressão tão respeitosa daqueles dedos em minha cintura que me lembro mais. Sempre me sinto purificada quando penso nele.

Uma epifania, com nome de apóstolo, em sua versão mais russa e mais provocativa. Quase um sacerdote dos novos tempos.