sábado, 31 de julho de 2010

gota

Insondável e indomável, inventava dócil e vagarosa o momento em que ele se lançaria decidido na imensidão que ela julgava oferecer. Sem volta.

Snezana e o Homem de Pedra

Ela se chamava Snezana, “Branca de Neve” em sérvio. Mas ela poderia se chamar também Meryem, “Maria” em turco, ou Francesca, “Francisca” em italiano. Seja o que for, Snezana era Snezana. E ela é a personagem dessa historieta.

Snezana era intensa e densa, era rosada e quente, bem diferente de seu nome pueril e um tanto frio. Ela saltava para dentro ou para fora com um impulso digno de uma atleta; mas em vez de preferir as pistas de areia, ela praticava seu esporte nos relacionamentos, especialmente os amorosos. Snezana se entregava com o mesmo ímpeto com que desistia; vivia narrativas inteiras, com começo, meio e fim, independentemente de seu parceiro em questão. Ele podia ser omisso, insensível, apaixonado ou o último dos românticos desesperados, mas Snezana trilhava dócil seu caminho singular: um salto para entrar, outro salto para sair. Não havia nunca volta: tudo era tão intenso e tão denso, tudo acontecia tanto naquele curto espaço de tempo em que o corpo ficava no ar e a alma alcançava uma trajetória curvilínea tão próxima e tão distante do infinito, que nenhum homem tentava retomar o relacionamento desde o início. Porque já havia provado um fim. Ou porque Snezana já o havia enterrado há muito tempo. Ou porque as cartas haviam envelhecido sobre a mesa, tesas, sóbrias, insolúveis. Xeque-mate. Na rainha ou no rei?

O último desses saltos de Snezana aconteceu faz pouco. Ela achara que havia encontrado alguém com a leveza adequada para seu momento esvoaçante, embora sempre denso e solene e veemente. Mas, na verdade, se deparou com o Homem de Pedra. Ele era leve, sim, apesar do peso do nome, e também objetivo e direto. Mas era duro, duro, duro. Era seco. Não tinha coração. Não era mau ou cruel, mas tampouco era sensível ou gentil. Não era. Enxergava Snezana como uma fêmea desprovida de singularidades: se a prova de toque confirmasse “mulher”, estava tudo bem para ele. Ele não queria conversas; aborreceu-se ao terceiro encontro, de novo conversa furada?, nem se importou com os beijos trocados. Como um super-herói dos tempos contemporâneos, ele dominava todos os sistemas de siglas secretas e anglicismos com maestria, não sofria com as mazelas cotidianas, tinha força de sobra e não queria nada mais elaborado do que sexo. Com as necessidades básicas satisfeitas, poderia salvar o mundo. Não o mundo de Snezana, nem o mundo de sudaneses, palestinos ou afegãos. Um certo mundo, válido provavelmente, mas com outras perspectivas.

Snezana saltou quando o Homem de Pedra já se preparava para sair. Aliás, ele saiu sem dizer “tchau”, deu de ombros e não respondeu ao último alô de Snezana. O fim da história para nossa personagem precisou ser acelerado, já que ela até que estava acreditando que um dia o Homem de Pedra viraria gente de novo. Fim, enfim. De novo.

E Snezana segue muito mais esperta e menos iludida que sua homônima dos contos infantis. Come maçãs sem nenhum problema e desconfia dos anões sentimentais que cruzam seu caminho. Tem pedido para os aspirantes a príncipe ou a super-herói deixarem currículo com carta de motivação, mas nem os lê. Passa os dias colhendo fagulhas de sol e exercitando seus saltos. Mas um dia, ela sabe, precisará se aposentar e escolher um canto para não mais abandonar.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

...

Às vezes, quando caminhava pela Avenida Paulista, contava as graminhas teimosas que quase surgiam nas beirinhas das calçadas. As beirinhas. Quase. Graminhas teimosas. Na Avenida Paulista. Às vezes. Quando, quando. Caminhava e contava.

Os pensamentos diversos, universos, eram todos um incremento de seu momento de suspiros e voos. Voos voados, voos planejados, voos caminhados. Tanta gente gente gente, tantas fagulhas de histórias misturadas num instante preciso: dá-lhe, já! A noite de ontem, a conta de hoje, o almoço de amanhã, a escola dos filhos, a escolha dos pais, a escada dos avós, a escama dos peixes, a esquisitice dos chefes, a exuberância dos amantes, a gravata de presente, a gravação do parente, a cirurgia e o paciente, o passo, o piscar, o pisoteio singelo nas graminhas teimosas que quase surgiam nas beirinhas das calçadas.

Ah, gemia gostando, ela equilibrava-se nas beirinhas das calçadas da sistema-sufocado-sugador, na beirinha quase caindo, nas beiradas das convenções, na beirada do edifício do amor: pulo ou não pulo. De que amor estamos falando?

Ah, um pequeno vaziozinho ao notar que ele desistiu logo que constatou que ela contava graminhas, que ela acumulava graminhas, que ela andava pelas beirinhas, enxergando e ouvindo coisas que ninguém mais sabia. Porque ele não entendia. Ele desistiu porque não entendeu. Ao não entender, não quis saber. Não quis arriscar. Não quis acompanhar a mocinha risonha em suas caminhadas pela Avenida Paulista. Tinha mais o que fazer: outras garotas, outros advérbios, outras praticidades. Sem tempo para graminhas. Sem coragem para beiradinhas. Sem vontade para ela. Então, tá.

Às vezes, quando circulava por São Paulo, observava a mudança de estação pela janela do ônibus e contava os sorrisos teimosos que quase escapavam dos transeuntes distraídos. Distraída, transeunte. Sorria. Mudava, mudava. Às vezes. Estação circular. Paulo. Ônibus. São... teimosos? Escapava.