segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A Whiter Shade of Pale

Quando a música deu seus primeiros acordes, todos os presentes olharam para trás. Não havia pompa, não havia ostentação. Havia, sim, dois inteiros – dois universos inteiros e diferentes – buscando uma união sob as bênçãos divinas. Simples assim, complicado assim.

Eram duas vidas cruzadas ali por puro mistério. Um pouco pálidos, talvez pela solenidade do enlace, mas os batimentos acelerados revelavam que seus corações andavam corados. E ali, naquele momento, entre “A Whiter Shade of Pale”, o buquê de rosas e eles, esse ritmo róseo era o que realmente importava.

Um dia, ele partiu. Não foi repentino: a separação provocou a mesma dor da união, posto que desencaixe do encaixe. Tudo seguia muito simples, sem qualquer ostentação, e todos os presentes olhavam para frente. Não houve música naquele dia, os ventos mineiros espalharam as folhas secas por cima da laje de mármore da família e espantavam as borboletas. Ambos estavam pálidos de verdade. Ela, pelo impacto da ausência. Ele, pela partida irremediável.

As cores sempre voltam a seus sabores. E, graças a esses dois mundos, estou aqui – um universo largo e difuso, mas belo pela própria natureza de universo humano.
E, se hoje passa uma nuvem muito grande e pesada sobre mim e sob o sol, acato a necessidade da pausa, da solidão e da transformação. Uma breve sombra pálida que não tira meu rosado, mas o realça: a novidade, como diz o genial Rilke, passa ao sangue depois de ter sido solenemente absorvida pelos intestinos e interstícios do ser naquele período pesado de tristeza e de paralisia momentânea diante da vida.

Fui gerada assim também: num instante pálido, como uma novidade, gestada no silêncio sôfrego das indefinições e brindada ao mundo por meio de sangue, placenta e amor.

E cá estou, pois. Estamos.
Bem-vinda, novidade. A seu lar que sou eu.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

rastros de infinito (ou infinito particular)


Não faz sentido algum, eu sei.

Tempos de silêncios do lado de lá e de cá, de cá já sem películas sobre o que se passaria com o de lá, ou o que pode se passar quando ou se, e já tentando não se alimentar daquilo que passou.

Passado, passagem, passeio.

Lá.
Cá.


A barba mais cheia, o cabelo mais comprido, la zeta bem pronunciada -- o de sempre.

Las charlas não são nada de mais ou de menos, são apenas las charlas. M'encanta fer petar la xerrada amb ell i... não sei por quê. Simplesmente gosto. Porque tem um carinho escondido, uma certa admiração misturada à expectativa de qualquer miudeza, um certo respeito pela epifania descoberta a dois. De lá e de cá.


Racionalmente, não faz sentido algum, eu sei.
Não há paixão, não há tesão à distância, não há explosão. Nem sentido.


Mas tem um certo cantar melódico de afetos que ainda faz eco, no silêncio, no recôndito. Tenho um pouco de medo das conseqüências, de fechar a porta trancando-a com nãos, ou escancarando o tapete, a almofada, o lençol. Não tenho que ter medo de nada, porque faz parte do mistério, esse polén com cheiro de lavanda, essa poeira com jeito de brilho de lua-cheia-quase-tocável.


Fecho, então, a janela só para que o vento gélido não me resfrie, e me atenho ao cotidiano e a seus insignificantes. A alegria quase imperceptível de lá e de cá se transforma, assim, em açúcar cristal para os beijinhos que se servem de vez em quando.


De vez em muito quando.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Se Fatih Akin não tivesse filmado "Do Outro Lado", seria necessário inventá-lo de algum outro jeito.

Embora os mutantes da Terra da Fantasia apontem os desdéns de sempre -- excesso de esquematismo, lógica forçada, excesso disso ou falta daquilo, ah, os movimentos de câmera que... --, há uma pungência nesse longa que está muito acima das coincidências que põem todos os personagens na mesma cadeia de eventos. Isso, aliás, é irrelevante. Só a cena final, de Nejat diante do mar, é um curta por si só. Um verso e uma história. Uma meditação sobre o ser e o nada, o sentido da vida.

A profundidade desse filme faz das emoções dos personagens as minhas, sim, e as minhas também se tornam as do personagem.

Talvez os habitantes da Terra da Fantasia jamais tenham experimentado questionamentos verdadeiros sobre a identidade -- estão mais preocupados com a 'fotografia dura' ou um mal uso do contraplongée. A esses mutantes: cuidado com o esquematismo de suas críticas. As lógicas forçadas que sustentam seus textos. Essa arrogância intelectual que traz impotência. Essa distância segura e não-contaminada que vocês impõem a nós, leitores. Cuidado...

divagações de uma alma imoral



Há alguns dias, uma certa alma, a minha, resolveu experimentar a retirada de mais um véu.
Transgressão, uma conchinha dessas que se largam na areia. Nada premeditado ou consciente. Simplesmente, assim simplesmente. Os sentidos não estão no verso, mas sim no reverso: novas perguntas sendo gestadas. E tudo se torna sagrado: os sentimentos, os pensamentos, os desejos, os gestos, os movimentos regrados e desregrados de dentro do corpo, as lonjuras e as proximidades.

Vírgulas... várias delas...

Estranha? Estranha é a sensação de haver rompido, meio sem querer, a película do tempo e do espaço que a envolvia, a ela, a alma. Sensação de não-pertença que dá frio. E provoca atordoamento: estou ali, tomando um café no terraço do prédio do Sesc Paulista, com amigo encontrado por acaso na rua, há tempos sem vê-lo, e ele vem me dizer três coisas que, desde ontem, já estão reverberando em mim e fazendo a diferença. Ele apareceu na minha frente para me dizer essas três coisas. Mais, só o futuro dirá. Enquanto isso, a megalópole, a poluição, as gotículas de garoa brincando de vagalume com os faróis dos carros congestionados, a broa de fubá esfriando com a mudança de temperatura e o capuccino tentando não provocar mais azia.

Torpor.

Era um não-sei-quê que eu já sabia, e sabia tanto, e cantarolava nos meus silêncios.
Existe um instante de deserto sem o deserto de fato; a dinâmica do cotidiano comum não combina com meu relógio biológico nem com meu compasso anímico. Não caibo nas caixas ou nos bancos nem me encaixo nos espaços delimitados por fitas plásticas amarelas e cones encardidos.

Sã.
Em paz, agora, com a cidade – nem amiga nem inimiga –, constato que não gosto de mim quando estou aqui. E de todos os problemas do mundo este, talvez, é o que me dói mais aqui e agora. Porque é o meu enorme fardo. Não consigo mais encontrar flores com pólen em reentrâncias paulistanas, e a despedida já começou. Mais longa e mais difícil por causa desse tanto que nem sei como explicar. Só faço chorar. E pobre do aparelho digestivo que digere, digere, digere cansadamente tanta emoção e já se enervou.


Vírgulas... Suspiros e ausências.
Não sei, não sei de nada, mas sinto falta.


Podia ser qualquer grito. Serotonina! Serotonina! Podia ser qualquer sussurro. Um propósito! Um propósito!

Tenho me divertido pouco com a vida ultimamente, é isso.
Ou tudo custa dinheiro – teatro, curso, oficina, livro, filme... –, ou tudo vira indagação na boca do outro – quando, onde, o quê, por quê, como, blábláblá. E não me reconheço em nada que seja superficial.


Num fim de tarde qualquer, me enrolei no cobertor e submergi.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

limonadas, caipirinhas, até picles


Por um período, pertenci ao grupo daqueles que passeavam pela Terra da Fantasia do lado de lá. Foi um tempo interessante, em que meu gosto cinematográfico foi incrivelmente refinado e meu olhar, apurado. O cinema se impregnou de tal forma em mim que preferi criar em vez de escrever ou divagar a respeito. Deixei a Terra da Fantasia com um alívio; em seus caminhos de pedra sabão, a sensibilidade sempre dá lugar à análise "crítica" (várias aspas), à teoria virulenta e a um apego idiossincrático a certos ícones e a certos movimentos-de-câmera-e-cortes-de-edição. Não digo que entre os passeadores não haja gente sensível; sim, há. Mas, para que a bruxa não os coma, fingem que suas emoções são o menos importante na hora em que a tela brilha. Que o brilho esteja no intelecto, dizem.

Pois bem: após meu período na Terra da Fantasia, já não consigo engolir qualquer coisa. O filme precisa satisfazer meus sentidos e meu intelecto, fazer eco em minhas emoções, atiçar algo mais fundo -- uma memória, uma dor, um suspiro, um desejo... Porém, desapeguei -- ufa, que bom -- de quase-ranços-crostas que estavam formando nos meus olhos cinéfilos, olhos de artista.


Numa entrevista, o polonês Kieslowski diz que, depois de fazer muito documentário, optou pela ficção para tentar expressar e captar aquela espontaneidade de certos momentos dissolvidos pela simples presença da câmera na mão de uma pessoa. Impossível registrar toda a verdade de um ato de amor, um casal fazendo sexo na intimidade das intimidades de seu lar e de suas vidas. Uma jovem chorando dissabores no escuro de seu quarto. Por isso, ele, Kieslowski, decidiu fazer ficção: para reproduzir tais momentos com delicadeza, intensidade e veracidade.


Esse prólogo vem por conta de "Lemon Tree". Ex-coleguinhas da Terra da Fantasia acharam isso ou aquilo, e pouco importa. O fato é que o filme escancarou minhas lembranças e vivências pela Palestina e por Israel. Revi até locais em que estive... E, embora tenha partido de uma premissa propositalmente bem-encaixada em que 'tudo vem a calhar' (o Ministro da Defesa de Israel vai morar justamente na vizinhança de uma mulher palestina com um pomar, nas proximidades da fronteira com a Cisjordânia), o longa é tão verdadeiro em seus subtextos e entrelinhas que me deixou triste. Triste pelo fato de que não só limoeiros como oliveiras, muitas delas, estão indo embora por meio das artimanhas israelenses, que agricultores são separados de suas terras por cercas de arame farpado cuidadas por soldadecos (eu vi com meus olhos), que as vozes discordantes em Israel são simplesmente ignoradas. Triste também porque os transeuntes da Terra da Fantasia esquecem muitas coisas pelo caminho, cegos de tanto focar. Nesse filme, importa menos se "a câmera só reforçou a tese do roteiro" e mais se o cinema pode ser tão intenso e impactante quanto a vida, pelos motivos ditos por Kieslowski. A verdade o perpassa, daí a sensação de que tudo converge para a tese do roteirista e diretor. Mas, nesse caso, isso não se faz determinante nem se torna um defeito. Ou um efeito.


-- EU SOU REAL! -- grita Salma.


"Lemon Tree" é um desabafo diante da cegueira e da surdez políticas, globalizadas e cinecríticas.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

sem clichês

(MFV, 2009)


Que dificuldade muitos têm de sair da superfície de si mesmos, escondidos atrás de cascas grossas, inteligências afiadas, rótulos cintilantes, perucas divertidas, perspicácia mundana ou perfume caro!

Que preguiça tenho diante dessas pessoas. Já não me atraem mais. O discurso oco -- ainda que belo na forma -- me soa clichê. Gente cuja escuta tem um limite limítrofe (por opção própria). Não escutam a si mesmas, como escutarão os outros?

Esse medo de visitar o próprio sótão, esse medo de enfrentar os espinhos encravados em carnes já necrosadas, esse medo da dor inerente à existência... tsc, tsc. Respeito o tempo interno das gentes e das coisas -- mas me torno impaciente para esse tipo de medo. Pre-gui-ça!


*


Poderia ter sido um dia como qualquer outro, talvez tenha sido. Houve palavras reverberantes pela manhã. Constatações, reconhecimentos. Os cardumes do fundo do mar continuam passando diante de meus olhos fascinados com a profundidade. As algas que só existem lá embaixo dão cócegas, trata-se de outra experiência do oxigênio. Houve a experiência do abandono e do deixar ir pela tarde. O que é abandono de fato e o que é uma despedida incompreendida. Quando é momento de partir, quando a vez é do outro, de o outro ir. Numa sala-retangular-encarpetada. Numa partilha com outras dezesseis pessoas. Poderia ter sido no sótão. Poderia, mas foi em conjunto, para que a dor também fosse partilhada e acolhida. As concavidades também escondem cavidades; a escolha, portanto, precisa ser completa. Corajosa, para o respiro, para o escuro. Houve epifania micromiúda pela noite. "Apenas uma Vez", vindo por mão de amiga querida. Ufa, sorvi a jóia. Um filme é mais que o arcabouço estético; e muitíssimo mais ainda que um produto rentável ou não. Esse dialogou comigo com suavidade e atenção. Ouviu-me também. O amor sem clichês. Uma história em que nossas expectativas são frustradas todo o tempo. Expectativas são nossas muletas diante do inesperado, do novo, do imprevisível, no desconhecido. Nosso refúgio tosco. Nossa ansiedade disfarçada. Aquele medo querendo se passar por vovozinha.
A entrega se faz necessária sempre -- é nisso em que acredito. Para que sejamos verdadeiros...


Em tempo oportuno, leitura poética de tudo isso. No momento, digestão. E azia, porque para mim também não é fácil.
::: Apenas Uma Vez (Once), de John Carvey, 2006 :::

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

un amor con barreras

("Te Amo", pintura de Cristian Muñoz, 2008)


Él vivía en la casa ya hacía unos meses. Llegó atraído por las paredes externas de color blanca, pero tan blanca que parecía no haber jamás enfrentado lluvia, por el olor de mermelada de fresas de los viernes y de tartas de naranja a los sábados. Por eso se instaló en aquel hoyocito cerca del comedor, con salida para el jardín de la casa, en un fin de semana. Ya no quería estar con sus compañeros en los basureros de la ciudad o en bodegas llenas de trastes de edificios grises y tristes. Y más que alimentarse de los trocitos de fruta que se caían detrás del horno o migas de pan, buscaba un lugar tranquilo, donde pudiera meditar, estar lejos de las muchedumbres de ratas aflictas y así compartir con otros seres. En realidad, él se sentía muy solo. Le encantaba la idea de encontrar alguien para amar.

Aquel día fue distinto de los demás. La familia no estaba en la casa, entonces pasó una semana sin el olor de fresas y los trocitos de naranja. Tuvo que buscar comida en la basura del vecino y casi se tornó juguete en las patitas del gatito muy joven que ahí recién había llegado. A fin de entretenerse, decidió explorar la casa, ya que con la gente casi no se arriesgaba ir además del comedor, de la cocina y de la siempre limpia bodeguita.

Fue cuando entró en el salón y la vio. Ella estaba allá. Luminosa, con un rayo de sol cayendo justo sobre su espalda. Azul, de un azul muy lindo. Alta, delgada. Parecía triste y soñadora… Quizás también se sentía sola en el medio del sillón gris y austero, de las poltronas oscuras y serias, de las mesitas envidiosas y las pequeñas lámparas chismosas.

El ratón se enamoró inmediatamente. Se quedó horas en la esquina de la pared mirando la bella silla azul, tan distinta, tan desubicada en aquel salón imponente. Creyó haber visto una lágrima le escurrir hasta la alfombra. Quizo abrazarle, pero decidió no acercarse. Volvió un día, después otro y más otro. La silla seguía calada, pensativa; los otros muebles comunicabanse en la lengua de muebles, y ese era un idioma extranjero y extraño para el pobre ratón. Tal vez hablaban de su objeto de amor, tal vez no. Quien sabría? En la única vez en que pasó delante de la silla, siguiendo la línea de la otra pared, notó que ella le lanzó una mirada triste. El corazón del animalito salió del compaso: estaba aún más enamorado.

La familia en fin llegó, y el ratón decidió no arriesgarse por algunos días. Pero añoraba la bella silla azul y se apenaba por la distancia. Ya sin aguantar, salió una noche, aprovechando que las lámparas y los dueños de la casa durmieron temprano. Fue hasta la silla, que también dormía. Empezó a hacerle cariños en las patas delgadas y lisas. Sintió un suave gemido y una palabrita incomprensible para su oidito de ratón. No supo cuantas horas estuvo él ahí. Despertó cuando la luz entró por la ventana hacia las patas de la silla. Felicísimo, volvió a su escondrijo. Ya ni le importaban las migas de pan de queso, que tanto le encantaban, el olor de fresas. Una noche después de otra, el ratón se acercaba de su amada. Sentía que era correspondido. Mientras le acariñaba las patas, le decía versos dulces.

Pero, cierta madrugada, alguien prendió las lámparas traicioneras. Fue la hija mayor, quien bajó a beber água y lo vio allá, apegado a la silla azul. Entre el susto y el asco, empezó a gritar. El ratón, sorprendido, volvió corriendo a su hoyocito bajo la mirada irónica del sillón.

La vida se cambiara insoportable. La familia, con miedo de que el asqueroso animal volviera, puso ratoneras por toda la casa y cuidó de aumentar la limpieza del piso. Él ratón ya no encontraba alimento, tampoco podría salir con libertad. Hasta el día que cerraron la entrada de su escondrijo, impidiéndole de volver a la casa. Era el momento de buscar un nuevo hogar.

Pasó mucho tiempo, fueron semanas, meses. El ratón había encontrado otra casa buena, dónde comía trozos de pollo y migas de cakes. Su corazón herido jamás encontrara otro amor; el recuerdo de la bella silla azul permanecía vivo y presente. Hiciera amistad con una pequeña y vieja tortuga que vivía suelta por el jardín y le escuchaba las historias. Una vez, después de un encuentro con amigas ratas, pasó delante un basurero colectivo. Notó unos trozos de madera azul; su corazón se apretó en un grito de dolor. Dios mío! Decidió no acercarse. Mejor que no supiera si, de echo, aquellas eran las partes de su amada. Mejor que la mantuviera viva y entera en sus pensamientos. Dios mío! Tan linda... tan triste... Aquel día lloró montón.


Fuera un amor verdadero aquel. Un amor lleno de barreras. Pero de verdad.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

fa sol al meu cor

(MFV, 2008)

To C., missing you


Às vezes, quando tomo café e olho pela janela, e o dia parece calado e demasiado sóbrio, independentemente da paisagem, ainda que faça sol, ainda que faça um sol muito belo, eu me lembro dele. Porque ele respeita muito dias assim. Dias que parecem tão humanos em suas contradições, mas que passam despercebidos para a maioria dos seres vivos. Muita luz e muito silêncio – enquanto todos seguem com suas tarefas e correrias cotidianas, as plantas fazem fotossíntese normalmente, animais pastam e ciscam.

Não me lembro bem de como nos conhecemos. Alguém nos apresentou quando eu tomava chá à tarde, ele também, mas não me senti à vontade. Era mais velho, seu olhar avançava meu colo adentro, embora meu decote fosse discreto, acariciava meus ombros e me pedia um suspiro. Ele não sorria com os lábios, mas seu sorriso de olhos era tão lindo que me enfeitiçou. Começamos a conversar, acho; a lembrança mais recente já nos coloca em perfeita sintonia e amizade.

Ele me viu nua pela primeira vez no dia em que resolveu ler a borra do café. Havia aprendido com uma amiga turca, me disse. Não sei; creio que se guiava unicamente por sua perspicácia e sensibilidade. Você é uma mulher de vales e montanhas, me falou, com candura e afeto. E aquele jeito de olhar. Eu já não me constrangia; me fixava em algumas manchinhas de sua pele, no desenho que as rugas faziam em sua testa. Você atinge o âmago – na transcendência ou na profundidade. Ele me tocava delicadamente com suas palavras. Eu, com roupa, sapato e xale, mas totalmente desnuda. Você gosta de estar com as pessoas na mesma medida em que valoriza seus momentos de solidão. Lança-se ao risco, mas protege-se.
Protejo-me dos homens, chorei escondido.
Ele me olhava, respeitoso da mulher que eu era. Como se ambos estivéssemos deitados num lençol macio e delicado. Nós dois e nossos profundos. Nossa insignificância, nossa grandiosidade.

Partilhamos sensibilidades, aridez também. Azeite de oliva com zatah, suas panquecas, minhas saladas de frutas, iogurte, outros cafés e chás. Partilhamos dias calados, dias humanos e frágeis. Vieram igualmente momentos fortes e doces, carinhosos de pura cumplicidade. Às vezes os dedicávamos à pura fotossíntese. Em outras, ciscávamos. Quase sempre existimos corajosos.

Chegou a umidade, uma outra estação. Nos separamos. Não por nada, porque tinha de ser.
Minha nudez, diante dele, já escandalosa. E a dele não me deixava mais constrangida. Doeu, doeu uma saudade grande e pálida... Meses depois, uma confissão: queria tanto fazer amor com você. Fiquei confusa, enrubesci. Como se o amor físico fosse uma violência ao amor que já sentíamos.
Outros tantos meses, desabafos meus, respostas dele. Talvez ainda não tenha terminado o tempo de nós dois, ele suspirou de longe.

Talvez não.
Nos dias de muito sol e muito silêncio, a maior das contradições, nesses estamos sempre muito juntos. Naquele lençol macio de nossas conexões, mãos dadas, olhares no sem-fim. E nesses momentos sempre será tempo de nós dois. Muito próprio, muito verdadeiro.


domingo, 1 de fevereiro de 2009

Vendem-se desconfiômetros (publicidade permitida)

Ou: como perder uma garota.

NO MSN
— Ei, você está aí?
— Oi! Há quanto tempo...
— Quer dizer que você esteve em Cuba?
— Pois é! Foi uma experiência inter...
— Maluca! Que droga, hein? Voltou comunista? Agora só falta ir a Katmandu!


NO TELEFONE
— Quero te ver o quanto antes.
— Quê?
— Minha vida está um inferno, preciso ver alguém como você. Por favor, finja que se trata de uma ajuda humanitária...
— Mas eu...
— Sabe que me arrependo de não ter curtido mais você. Por que passou tão rápido pela minha vida? Agora quero me apegar.
— !!!
— Pois é, quero me apegar a você. Danem-se os budistas com essa história de desapego e tudo o mais.
— E se eu for a Katmandu?
— Isso, vamos a Katmandu!
— Certeza? Mas antes eu vou a Cuba.


— Voltou para ficar em São Paulo?
— Não sei. Por enquanto, estou aqui. Mas busco uma cidade com alma de artista e...
— Vai para onde?
— Ainda não sei. Na verdade, sinto que...
— Está de saco cheio do Brasil, não é?
— Não, não tem a ver. Não estou fugindo de nada, eu...
— Fui para Arraial d’Ajuda. Nossa, que bem me fez. Por que você não foi comigo, hein?Ah, imagino nós dois lá. Poderíamos viver tranqüilos lá. Você nunca pensou em Arraial d’Ajuda?


— Vamos, então, jantar amanhã? Já sei: um restaurante japonês. Você pode às 21h?
— Não quero sair com você amanhã. Nem depois.
— Você gosta de japonês, não é?
— Não.
— Eu passo na sua casa, eu te levo de volta.
— Não.
— E na sexta?
— Tenho um show.
— E no sábado?
— Um curso.
— No domingo?
— Verei a peça dos meus amigos.
— Eu vou te ligar, então, para combinarmos.
— Já lhe disse, você não me escuta: não. Se um dia eu estiver a fim de sair com você, ligo.
— Ih, vou esperar sentado, hehehe.


NA SEXTA
Recado no celular: vamos sair hoje?


NO SÁBADO
Recado na secretária eletrônica: vamos sair hoje?


NO DOMINGO
Torpedo: vamos sair hoje?

Resposta: “Não. Nem hoje nem nunca. Não tenho motivação alguma em ver você.”

Torpedo 2: TPM?


EPÍLOGO EM ABERTO
1. Se o rapaz não usar desconfiômetro, voltará a ligar em alguns dias como se seguisse exalando sedução.
2. Ele pode tentar ir a Katmandu sozinho, o que seria muito bom para ele mesmo e seu entorno.
3. Talvez descubra que o que realmente precise seja de um aparelho contra a surdez crônica e um antídoto contra o egocentrismo.
4. “Para de ligar pra minha mina senão te encho de porrada!”